terça-feira, 16 de novembro de 2021

Por que gostamos da Utopia

As vezes tudo me parece tão utópico, tão distante, como algo que jamais alcançaríamos, mesmo se tivéssemos do outro lado do rio. Bem, poderíamos de certo modo falar que a utopia cabe dentro daquelas almas sedentas por justiça, onde todos mereciam o paraíso. Um lugar, não sei, muitas vezes presente no imaginário dos sonhadores que sonham em que todos são iguais. Certamente estes estão na margem contrária do rio. Interessante ver que Utopia foi descrita por Thomas More como uma ilha distante, as vezes impenetrável a qual cada cidadão desempenha seu papel com grande competência e certa alegria. Nela o guerreiro é um guerreiro e sabe de sua importância social. O agricultor, homem da terra reconhece sua função perante aos outros habitantes. Em Utopia todos estão conectados com a terra, o ar e água e não envolvidos demasiadamente numa falsa conexão via redes sociais.

O utópico acredita nos valores da igualdade e na harmonia entres as pessoas. O equilíbrio das forças tem um enorme sentido quando se é um utópico. Não existe utopia num mundo cuja a balança do poder, política ou economia sempre tende para um dos lados. A utopia é um constante vir a ser, uma vontade latente que urra feito um animal feroz para que tudo vá em direção ao equilíbrio.

A equidade talvez seja o principal mote do pensamento utópico, ao contrário da igualdade em que todos são colocados dentro das mesmas leis e direitos. A equidade estabelece uma reconexão com os desiguais, dessa forma incluindo aqueles que foram excluídos. A visão de equidade no pensamento utópico promove o nascimento de ideais progressistas e de democracia participativa.

A democracia participativa, diferentemente da democracia representativa, é aquela que permite o povo interagir diretamente nas decisões políticas, por meio dos conselhos instalados nas cidades e bairros. Nela, o povo tem voz e aponta diretamente as necessidades de sua comunidade. A democracia participativa é o que mais se aproxima dos utópicos. No entanto, a democracia representativa, os representantes eleitos se apossam do poder e atendem as necessidades somente de seus grupos de interesse, típico do sistema capitalista.

Não há vez para o capital. Utopia não cede lugar para grandes conglomerados industriais, investidores e capitalistas que buscam o lucro fácil e criam uma massa proletariada empobrecida. Também não comporta esse capitalismo financeiro improdutivo, da qual dinheiro gera dinheiro como num passe de mágica. É muito menos aceita essa nova onda de trabalhadores por aplicativos.

Diante de tal fato Utopia tornou-se imune a pandemia provocada pelo vírus da tecnologia em rede e seus habitantes conseguem facilmente se conectar com as coisas da natureza. Portanto não há espaço para motoristas de aplicativos ou entregadores de comida via rede. Os utópicos acreditam na equidade, no equilíbrio e na natureza, tanto que abominam seres artificiais, imagéticos, que não tenha corpo ou ficam por trás de uma impondo suas pós-verdades.

Alguns aspectos importantes de sobre a estrutura política e econômica de Utopia, pode ser observado nas palavras do próprio Thomas More, assim ele aponta que:

"Em utopia seus habitantes aplicam os preços baixos a suas exportações e se preocupam com a pobreza não apenas em seu próprio solo, mas também em outros países, ao doarem aos pobres de cada país importador um sétimo dos produtos que para lá exportam. Para realizar esse comércio, produzem excedentes, plantando trigo e criando gado em quantidade superioras duas necessidades. Quando têm provisões suficientes para dois anos de produtos como trigo, mel, lã, madeira, grãos, couro, e pele de animais, vendem o excedente a outros países. Com os ingressos provenientes de suas exportações, importam diversos bens como ferro, ouro e prata. [...] A criação dessas reservas e a manutenção de outros países em permanente endividamento fazem parte de sua estratégia de dominação. [...] A existência de comércio não caracteriza uma expressa abertura para o exterior, já que a necessidade importação está limitada ao ferro. Por esta razão, poucos comerciantes vêm a ilha negociar" (MORE, 2004, p.27).                      

O pensamento utópico descrito por Thomas More faz referência ao descaso do capitalismo com o bem-estar da sociedade e a sua nocividade aos princípios da igualdade. Observamos que Utopia adota uma estratégia econômica planejada, onde o Estado cria regras claras de comércio interno e externo para evitar os abusos. Dessa forma, More aponta que:

"onde existe a propriedade privada, onde o dinheiro é a medida de todas as coisas, não é possível governar de forma justa e próspera. Não pode haver justiça onde as melhores coisas da vida pertencem aos piores homens e ninguém pode ser feliz, onde apenas uns poucos indivíduos repartem entre si todos os bens, desfrutando de grande conforto, enquanto o resto dos homens vive em deplorável miséria (MORE, 2004, p.42).  

É justamente isso que os utópicos não aceitam, a desigualdade sócio-econômica. Para eles todos os homens merecem a riqueza que é produzida e que não vivam a margem da pobreza. Por isso o capitalismo é visto pelos utópicos como um sistema bestial, desumano por jogar bilhões de pessoas na extrema miséria.


sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Psicodelia tecnocrática: a contracultura de Theodore Roszak

 

No mundo psicodélico dos 60 e 70 do século passado, em que amor, paz, drogas e rock in roll apareciam como o lema principal do movimento hippie - um mundo anárquico, em que era proibido envelhecer. Esses jovens dotados de uma ampla liberdade se colocavam num movimento em prol da paz e do amor, sendo eles totalmente contra as guerras deflagradas pelos Estados Unidos. Vivia-se os ideais da contracultura, que fugia dos preceitos impostos por uma sociedade tecnocrática e pela ilusão de uma democracia representativa. A busca era por uma sociedade totalmente livre, algo próximo da anarquia.

A tecnocracia é um elemento próprio da sociedade industrial, que domina o desenho político, social e econômico por meio das técnicas e tecnologias, além de influenciar o comportamento humano. Na sociedade tecnocrata somos moldados inconscientemente por uma educação racionalista planejada, através de aparelhos ideológicos do Estado. No livro: a contracultura, o autor – Theodore Roszak (1972, p.22) – nos descreve que os sistemas políticos são altamente prejudiciais, por que devoram a cultura, e com isso conseguem controlar nossas vidas, numa ação totalitária. Ainda, afirma Roszak, que tecnocracia é o regime perfeito para o totalitarismo - que invés de armas – aplica técnicas subliminares. O filme, Laranja Mecânica de Stanley Kubrick é o exemplo perfeito de como o Estado tecnocrático apodera-se dessas técnicas subliminares para enquadrar a sociedade.

Ainda conectados à obra de Roszak (1972, p.26), nos é fornecido uma pequena definição de tecnocracia e assim diz ele: a tecnocracia é um novo modelo de autoritarismo, com base na satisfação para provocar a submissão e ao mesmo tempo enfraquecer as lutas e a capacidade crítica das pessoas. Portanto, cabe aos movimentos contra culturais por abaixo todo e qualquer tipo de elemento vindo do Estado tecnocrático, que limita os ideários de liberdade.

Enxerga-se na obra de Roszak (1972, p.29) que na verdade vivemos dentro uma imensa ilusão democrática, ao passo que ele chama a democracia de pesquisa de opinião, onde se diz “sim” ou “não” para um conjunto de perguntas predeterminadas, ainda acrescenta que o debate não passa de um espetáculo ensaiado. Na tecnocracia capitalista de Roszak, o lucro é peça principal do jogo, ele quem dará o xeque-mate. O lucro é o fator principal, como diz o autor, para ações corruptas.

Nessa sociedade tecnocrata tudo é projetado, maquiado e ornamentado, às vezes sutilmente, para termos a sensação de uma democracia, da qual todos tem o direito de participar e opinar, são livres - mas automatizados – por que há por trás um rigoroso controle social, que na maioria das vezes faz-se visível, porém ignorado pela sociedade.

Esse sentimento que adentra o livro de Roszak, a respeito da tecnocracia, traz em si a mesma sensação em Foucault, quando descreve o biopoder, na qual as instituições do Estado, tais como: escolas, prisões, hospitais psiquiátricos e quarteis servem, por meio da tecnobrurocracia, como instrumento de manipulação e controle social.

Enquanto isso, a iniciativa privada com subvenção do Estado detém a manipulação do mercado para colocar seus produtos (tangíveis ou intangíveis) ao alcance de uma massa de consumidores de classe média, muitas vezes inconscientes e impulsivos. Então, vamos sobrevivendo neste mundo cada vez mais globalizado, cuja direção foi o neoliberalismo e os avanços tecnológicos junto ao conhecimento foram tomados pelo capital.

Agora, torna-se quase impossível de se criar narrativas concretas e factíveis a respeito do comum, da coletividade e da democracia participativa. Sendo, então, impraticável a proposição de novas políticas públicas voltadas para as necessidades sociais. Quiçá um dia, se com a retomada de um novo ideal progressista no âmbito da política e da participação coletiva seremos capazes de reconstruir as antigas estruturas do Estado de bem-estar social, ou caminhar para um socialismo pleno, e com isso aniquilar a lógica perversa da dominação capitalista, geradora de opressão e repressão contra a sociedade. 

Sobre essa questão da repressão, Roszak (1972, p.112) tece relevantes comentários, de como ela influência negativamente a distribuição desigual da escassez na sociedade, onde as classes dominantes privam e exploram aqueles mais carentes, diante de tal fato inicia-se à “lógica da dominação”. Lógica essa, intrínseca do neoliberalismo e fruto da tecnobrurocracia.                

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Desconexão, re-conexão e conexão do mundo


Antes de aprofundarmos neste tema como parte importante deste artigo. Iremos colocar aqui de forma despretensiosa um jogo de palavras para demonstrar os conceitos que estão por detrás do assunto.

Conectados - conectores e conexão: palavras que nos remetem atualmente as redes e sistemas ligados ao espectro tecnológico, como: aplicativos, internet, rede sem fio.

Re-conectar - (re) conexão: restabelecer conexão com sistemas e redes, mas podemos dar outro significado num sentido mais humano, na qual buscamos Re-conectar com mundo e as coisas da natureza, que sem sabe voltarmos as origens. A re-conexão vai de encontro com as ideias, pensamentos e a reflexão.

Desconexão - desconectar: estar em "off", desligado das coisas. Entretanto, a desconexão nos leva para um sentido mais etimológico da palavra quando seus significados apontam desajuste, incoerência, desordem, falta de entrosamento e desarticulação.  As vezes caos.

Em particular, tomaremos a palavra desconexão numa direção oposta como uma necessidade de se distanciar do mundo conectado que prejudica nossa capacidade de criação e a plena liberdade de viver.

Nesses tempos de redes, sistemas e aplicativos que são próprios do mundo tecnológico, passamos a viver 24 horas conectados e inseridos num ambiente virtual plugado em rede. No entanto, as nossas conexões são bastante superficiais, rasas e nem mesmo conseguimos ultrapassar as meras formalidades de um espelho d'água que reflete apenas a imagem de nós mesmos.

Por isso, somos incapazes de reconhecer o outro e as suas necessidades, angústias, medos, valores e entre outras coisas, as suas competências e capacidades. Estamos imersos em nosso próprio eu, assim como Narciso.

Isolados em meio a uma multidão de seres inertes, fascinados pela maravilha das telas ilusórias rumo ao abismo que nos mesmo cavamos. Então vemos a vida real se esvair na última tentativa de uma falsa esperança. Poético, pode até ser, mas eu diria trágico e inquietante quando as telas projetam imagens daquilo que desejamos ser, por jamais refletir a nossa verdadeira face. Nelas escondem-se as mais perversas e impensáveis atitudes humanas. 

Estamos em meio a uma grande pandemia, que nos assola e nos faz ainda mais grotesco. Tal pandemia nasce de dentro para fora, uma força centrífuga que nos expõem enquanto ser humano. Ela não é natural, não vem da terra, nem da água e muito menos do ar. Foi gerada por nossas tecnologias e suas redes e telas.

Trata-se de uma pandemia tecnológica, "high tech", computacional que nos infectou pelas redes sociais e aplicativos. Agora, passamos o tempo todo conectados e disponíveis apenas para nossos tablets, notebooks e smartphones. Somos sugados para dentro de nossos dispositivos tecnológicos vivendo num mundo irreal e de puras ilusões.

Ao mesmo tempo vivemos completamente desconectados da realidade e do ambiente físico. Pois, tudo que nos remete ao real parece ser uma grande mentira. Perdemos a dimensão da verdade e caímos na pós-verdade. Mas o que seria essa pós-verdade? - Uma espécie de verdade futura, algo que se sobrepõem a verdade? Realmente é um conceito novo, que tem se alastrado no meio político e midiático.

Quem sabe poderíamos dizer a pós-verdade tem em seu conceito tudo aquilo que implica em distorcer os fatos só para influenciar as pessoas com o uso de apelos emocionais. A velha máxima utilizada na Alemanha durante o nazismo - uma mentira propagada mil vezes, torna-se verdade, talvez assim conseguimos definir a pós-verdade.   

A pós-verdade nada mais é que o desvirtuamento da verdade, manipulação dos fatos, que encontrou terreno fértil no campo político, sendo utilizada sistematicamente para denegrir os adversários e produzir linchamento moral. As tecnologias de redes sociais assumem um papel de extrema relevância na propagação de pós-verdade e claro que para o mal. A todo momento são postados milhões de "fake news" e conservas caluniosas no âmbito da política.

 A todo momento "influencers" digitais são cancelados na rede por expressarem suas opiniões que em maioria desagrada a vontade do outro. O cancelamento não passa de uma atitude de intolerância, mostra que as pessoas não sabem mais ouvir e respeitar a opinião alheia.

A atitude do cancelamento demonstra uma falta de maturidade das pessoas frente a tecnologia das redes sociais, talvez um despreparo para lidar com a vida real por não aceitar ouvir. Quando eu cancelo o outro é por que sou incapaz lhe dar com minhas próprias frustrações, angústias e medos. Meu ego não permite a vitória do outro, então para derrotá-lo eu o cancelo. Podemos dizer que o cancelamento é a nova arma midiática das almas ressentidas, que teimam em não crescer.

Isto é, a tal pandemia que falamos a pouco, propagada pelo excesso de conectividade é também causada ao mesmo tempo pela desconexão, dado que aqui a desconexão trata-se de um desajuste, uma desordem e uma falta de entrosamento entre as pessoas. Por isso, somos dotados de certa incoerência e incapazes de articular interações com o outro. A desconexão nos afasta da realidade e daquilo que nos faz essencialmente humano. Beiramos ao caos total.

Por outro lado, como já havia dito, a desconexão só é positiva se for no sentido de desligarmos do ambiente virtual, tecnológico. Talvez estejamos desligados, em "off", justamente por estarmos conectados demais com o mundo da virtualidade, das redes. Dessa maneira, nos isolamos numa bolha impenetrável, achando algum motivo que nos satisfaça. Porém, toda satisfação é efêmera, depositada num curtíssimo prazo.

Não há vacina e nem remédio para essa pandemia já fomos infestados, o vírus da tecnologia nos dominou por completo. A nossa mente obedece apenas aos comandos das telas e ficamos obrigados a consumir produtos que se quer precisamos oi queremos por influência das redes. Tudo por que nos desconectamos de nós mesmos, deixamos de ser o que somos para transformarmos em homens- consumidores.

Temos que inverter o botão a qualquer preço e religarmos nossa conexão com aquilo que nos torna humano de fato, precisamos restabelecer nossa condição de ser e voltar às origens. Mesmo que não haja cura para essa pandemia tecnológica devemos reinventar nossos caminhos, traçar rotas alternativas e assim nos reconectarmos com o mundo real. Quem sabe sairemos vencedores dessa luta contra o caos. Meus caros, a guerra contra a pós-verdade é árdua e ingrata, ainda mais se estamos com a mente dominada pelo vírus pandêmico que se alastrou pelos confins da mídia.

Assistimos atônitos e zumbificados as telas que arremessam continuamente milhões de informações falsas por segundo, quando não apresentam um show de besteirol para desvirtuar nossa atenção. Somente a reconexão de nossas ideias, pensamentos e criatividade nos libertará de vírus, um verdadeiro circo de horrores. Entretanto, não faço a mínima ideia de como eliminar este agente infeccioso, que corroí nosso cérebro. Portanto se algum leitor tiver solução que nos apresente.

No entanto, não se combate a pós-verdade e seus elementos - no caso a fake news - com repressão e censura. O uso de instrumentos de censura é uma posição defendida por aqueles que são contra as liberdades, especificamente a liberdade de expressão exercida pelos meios de comunicação sérios e fidedignos. A luta contra as notícias falsas se faz com a amplitude da democracia, através de uma mídia jornalística séria, comprometida com a verdade dos fatos. Qualquer atitude que impede as pessoas de se expressar livremente é um prenúncio de um regime antidemocrático.  

A educação de qualidade aparece neste quesito como ponto central no combate a fake news. Sendo uma importante fonte para que as pessoas possam aprender, a discernir, opinar e avaliar os acontecimentos, os fatos e a história. Essa base está calcada no ensino das humanidades como a política, a economia, a sociologia e a filosofia, disciplinas essenciais ao pensamento crítico.    

Pois, a conexão e desconexão recaem sobre a semântica, elementos próprios da linguagem que reproduz o significado e o sentido dos termos, que foram apropriados pela comunicação e utilizados nos meios comunicacionais, transformando a mensagem em mercadoria consumível, basta vermos o rádio, a TV, os jornais e agora a internet. É pela linguagem que o capital se satisfaz e se espraia nos espaços sociais modificando toda uma cultura.

Os signos e os símbolos da linguagem penetram os meios de comunicação para atingir a sociedade, criando uma massa de espectadores sempre vidrada no próximo espetáculo. Com a tecnologia da informação e as redes, os meios de comunicação ganharam novos canais para ampliar sua audiência. Canais estes menos formais e fortemente imagéticos que possibilitam arrebanhar bilhões de pessoas em questão de horas.    

O capitalismo soube muito bem explorar esses novos meios de comunicação, e com isso “mercadorizar” as pessoas, que são ao mesmo tempo espectadores e protagonistas desses canais. Enfim, o capital exige que o homem moderno esteja conectado diuturnamente para gerar audiência e concomitantemente oferecer lucro por um trabalho que exerce sem qualquer remuneração. A audiência é sinal de lucro, onde a linguagem é o objeto de exploração.

De outra forma, a linguagem também serve muito bem ao campo cientifico e à construção de metodologias para que a ciência possa realizar suas investigações, determinar suas hipóteses, e projetar modelos. Neste ínterim, a linguagem recria mecanismos culturais próprios de uma semântica proveniente do meio acadêmico e cientifico geradores de instrumentos de comunicação bastante singulares para atender a grupos específicos. Em suma, essas comunicações cientificas provenientes de pesquisas, ensaios, análises e estudos traduzem-se numa vasta documentação direcionadas a um seleto público detentor de um enorme conhecimento cientifico, mas pode estar presente em bibliotecas, arquivos e centros de documentação. Dentre essas comunicações especificas da ciência nascem os artigos de periódicos, revistas cientificas, jornais especializados, bibliotecas virtuais, boletins técnicos, vídeos científicos, web conferências de especialistas, entre outros. Mais uma vez, o capital cognitivo, imaterial ou financeiro reaparece como agente instrumentalizador que organiza, financia e depois apropria-se desses conhecimentos, transformando-os em patentes e marcas lucrativas.

Esses conhecimentos, entre tácitos e explícitos, em sua maioria foram desenvolvidos coletivamente nos laboratórios de universidades públicas e institutos de pesquisas com uso de recursos e verbas públicas. Portanto, deveriam ser retornados para a sociedade. O que temos aí então, será um comunismo do conhecimento cientifico, a qual o conhecimento passou a ser comum a todos. Entretanto, as forças capitalistas o tomaram para si e o transformaram em mercadorias, como patentes. Os cientistas e pesquisadores ficaram relegados à condição de simples trabalhadores intelectuais, proletários do conhecimento, operadores do saber que produzem o saber em troca de um salário. É a completa uberização do trabalho intelectual, um movimento próprio do capitalismo atual. O conhecimento do comum forçosamente curvou-se aos pés do capital, entregando-lhe as chaves do saber cientifico. Assim, podemos dizer que a linguagem das comunidades cientificas foram reduzidas e alienadas, ficando seus canais abertos às distorções e ruídos, conforme o desejo dos meios de comunicação. O conhecimento deixa de ser um bem comum para integrar o lugar das mercadorias e com isso satisfazer os desejos daqueles que a consomem.

A linguagem da ciência codificou-se em números numa tela de computador, tudo é contabilizado em valores monetários, em planilhas de custos, em demonstrativos de resultados e balanços contábeis que determina o preço dos seus ativos financeiros no mercado. Só a notícia na TV ou em qualquer outro meio de comunicação; seja de uma vacina contra algum vírus, seja a criação de uma nova patente de um medicamento, já serve para o capital financeiro oscilar na bolsa de valores. O dinheiro produtor de mais dinheiro, agora, tem sua reprodução baseada apenas em fatos e notícias meramente especulativas. Não importa a verdade, ela não traz conforto e muito menos alegria. O que queremos é a ilusão de um mundo irreal. Com isso, levamos para casa o espetáculo. Espetáculo este que é o determinante da alta ou baixa no preço das ações e títulos de grandes corporações que operam no mercado financeiro. Neste show somos meros espectadores, assistimos atônitos às apresentações deste circo de horrores completamente alienados, nossas mentes são dopadas por pílulas de fake-new. Afinal, o circo já foi armado e os pães distribuídos (Panis et circensis). Não nos resta mais nada, além de ficarmos passivos e omissos.

 


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Cinema: uma crítica nem tão sútil ao neoliberalismo

 

A realidade política e econômica não se apresenta somente nos meios impressos (páginas de livros, jornais e revistas). Nas telas de cinema, produtores, diretores, roteiristas e atores colocam suas críticas - mesmo que veladas, ou não - a respeito dos sistemas econômicos, dos excessos provenientes das grandes corporações, dos governos ditatoriais, dos preconceitos de raça, sexo ou classe social. Um filme, por mais sútil que pareça, traz em si uma certa carga crítica, um pano de fundo revestido com alguma mensagem. Outros filmes, já colocam sua temática em aberto, buscam transmitir uma reflexão, mais ou menos profunda. Críticas ao neoliberalismo também permeiam a linguagem cinematográfica, sejam em dramas, comédias ou ficções, a profundidade do tema vem à tona nas ações de seus personagens.

Em suma, a linguagem cinematográfica mostra-se um excelente ponto de referência para explicarmos essa dinâmica das desigualdades sociais, das misérias humanas, provocadas pela transição do capitalismo fordista para o capitalismo financeiro atual. Um filme - às vezes - é muito mais mero que entretenimento, as imagens geralmente estão carregadas de mensagens subliminares, ou mesmo, de conteúdo reflexivo. Portanto, vamos abordar aqui dois filmes, entre centenas ou talvez milhares, que mostram não tão sutilmente os efeitos nocivos do neoliberalismo na vida cotidiana.

O primeiro deles - They Live  (Eles Vivem) é um desses filmes que nos faz pensar o quanto o capitalismo pode ser desigual e alienante. O filme escrito e dirigido por John Carpenter em 1988 trata-se de uma ficção científica, ao mesmo tempo satírica e violenta. O protagonista John Nada é mais um homem comum em busca de trabalho que sobrevive num Estados Unidos dos anos 80 marcado por um período de inflação, desemprego e crescente desigualdades sociais. No entanto, John consegue um trabalho na construção civil e passa a morar num acampamento de sem-tetos. A revelação vem durante uma opressiva operação das forças policiais, que destrói os barracos, tenta expulsar os sem-tetos e prende algumas pessoas, ali alojadas.

Durante essa confusão, o nosso personagem, John, encontra uma caixa de óculos escuros, ao colocar um deles em seu rosto descobre que a elite não passam de seres alienígenas escondendo, que disfarçados na forma humana manipulam as pessoas para consumir e também aceitar as desigualdades, utilizando-se dos meios de comunicação e intensivas propagandas. Os óculos trazem à tona a verdadeira face dessa elite alienígena que detém o poder financeiro e a capacidade de manipulação via antenas de TV. O filme em si traz uma abordagem política, social e econômica características dos anos 80, período de uma desindustrialização própria do fordismo com forte entrada de medidas neoliberais que objetivavam a redução dos gatos públicos, dos impostos sobre os ganhos de capital e da economia, ampliando a diferença de rendas entre ricos e pobres, que culminou no aumento de sem-tetos (demarca o fim do Estado de bem-estar social). Além de abordar a questão da exploração e da servidão humana de forma bastante velada.

Já o filme High-Rise (No topo do poder), 2014, dirigido pelo Britânico Ben Wheatley, produzido por Jeremy Thomas e baseado na obra homônima de James Graham Ballard. O filme situa-se no fim da década 70, período emblemático em que as ideias neoliberais começam a despontar na Inglaterra e no mundo, tendo como ambiente um enorme edifício de luxo, da qual recebe um novo morador, o médico Robert Laing. Logo, o protagonista, que ocupa uma posição mediana no prédio, se vê numa briga entre os moradores dos andares superiores e inferiores. Essa desavença entre os residentes revela uma luta de classes própria do sistema capitalista, em que os ocupantes dos andares superiores (a suposta elite) culpam os moradores dos andares inferiores pelo mal funcionamento das estruturas do edifício. É daí que desencadeia toda confusão, que provoca ações revoltosas levando ao mais completo caos. O edifício trata-se de uma alegoria, um arquétipo da sociedade, que como tal divide-se em classes sociais e cujas desigualdades tornam-se evidentes. No entanto, essas desigualdades não são aceitas por aqueles que ocupam as camadas mais inferiores, desdobrando-se em manifestações, muitas vezes violentas.

Um destaque importante no filme é em relação ao protagonista, que por pertencer aos patamares medianos, se vê expulso da festa temática da elite que reside os andares superiores. High-Rise (No topo do poder) nos dá uma sátira de um microcosmo distópico em que as diferenças sociais podem acirrar os ânimos e tornar o confronto inevitável. Outro ponto a ser destacado no filme, faz referência ao arquiteto que projetou o prédio - morador da cobertura, como alguém que a princípio seria o controlador de tudo. Alegoricamente, poderíamos comparar o arquiteto como um criador, uma espécie de tecnocrata que detém o poder para interferir nos modus operandi daquela sociedade microcósmica. Porém, este suposto poder do arquiteto não se configura, dado que ali introduziu-se um ambiente de guerra, caótico e impossível de governar a partir do momento em que a democracia foi rompida.  Enfim, o filme trate-se de uma crítica social e econômica daquilo que vivemos hoje no mundo neoliberal, colocando em pauta as desigualdades, o preconceito e principalmente onde poderá se chegar caso essas diferenças tornem-se ainda mais abissais. Pois não estamos muito longe de uma convulsão classes.  Ambos os filmes trazem em sua temática problemas cotidianos, questões ligadas as diferenças sociais e as desigualdades de renda. Percebe-se que os dois filmes têm como palco a cidade grande, local em que as pessoas procuram realizar seus desejos, obter oportunidades e desenvolver-se profissionalmente. No entanto, acabam frustradas nessas ilusões meramente capitalistas.        

 


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O desabafo da classe trabalhadora

 

Pergunte-nos, o que tanto desejamos! Responderemos em alto e bom som, uma narrativa – mas não uma qualquer – tem que ser a narrativa com o poder de abalar as antigas estruturas do sistema, capaz de desconstruir os mitos, as crenças e o valores de uma cultura dominante, pautada na expropriação, na alienação e na espoliação da força de trabalho. Com isso, reconstruir a cultura dos antepassados, que idolatra os deuses da natureza, como o sol, a lua, a chuva e valoriza o trabalho coletivo.

Se somos trabalhadores, merecemos o pão, o vinho, o salário digno, a igualdade e a liberdade de ser humano, mas - antes de tudo – a narrativa e aí sim produziremos histórias. A nossa história, de lutas e de conflitos – para utilizarmos contra a exploração. Porque, o trabalho produz não só mercadorias, produtos que atendem o consumo dos mais ricos, mas também gera uma série de outros fatores comuns ao mundo econômico como riqueza, desigualdades, escassez e crises.

A narrativa serve de instrumento para construirmos cenários através da linguagem, que com seus símbolos e signos nos tornamos capazes de enfrentar as adversidades impostas pela opressão dos sistemas, sejam eles totalitários, ou mesmo aqueles pseudodemocráticos. Infelizmente na contemporaneidade, as falsas narrativas dominam como se fossem autênticas, mas não são. Pois, utilizam uma linguagem semelhante à nossa, então, a empacotam e distribuem nos mais variados meios de comunicação de massa e para muitos, tal linguagem, apresenta-se como normal e palatável. Essa, é a narrativa da opressão invisível, que opera no domínio das mentes e coroações.

Essa linguagem formatada em pacotes e composta de falsas narrativas nos jogou para aquilo que Fumagalli denomina de bioeconomia, ou seja, a economia da vida que é parte do biopoder foucaultiano. Assunto que veremos nos próximos capítulos deste livro. Portanto, somente a verdadeira narrativa, vindas dos trabalhadores e de sua cultura, terá condições de nos retirar dos espaços de dominação e da opressão invisível, e nos colocar novamente no eixo da nossa história.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A desindustrialização

 

Na primeira metade do século XX, a indústria automobilística representou o suprassumo do capitalismo produtivo e da tecnocracia, que fomentou o desenvolvimento de vários outros setores, principalmente a indústria de base. Os setores industriais contribuíram fortemente para o crescimento das cidades e com apoio do estado ampliam estradas, abriram rodovias, fortaleceram o comércio e serviços, além de desenvolver as pequenas oficinas e fábricas. Mas, na segunda metade deste século XX, os setores industriais começam a sofre sua derrocada. O capital passa a transferir sua vertente produtiva para uma vertente financeira que não exige custos com matérias-primas, instalações físicas complexas, maquinários e mão de obra. Inicia-se a desindustrialização.

O processo de desindustrialização teve seu marco a partir dos anos 80, coincidindo com a globalização e o fim do regime socialista no leste europeu. Época da queda do muro de Berlim e pouco depois o fim da URSS. A velha indústria não encontra mais fôlego para sobreviver, diante das grandes inovações tecnológicas e da robotização.

A indústria automobilística é um exemplo real desses novos tempos, ao passo que substitui trabalhadores por robôs capazes de realizar todo trabalho de fabricação e montagem dos automóveis.

O mesmo ocorre em outros setores industriais, e tal fato obriga o operário a buscar novas formas de resistir à desindustrialização, indo então para o setor de serviços ou comércio sujeito a ganhar um salário bem menor. Portanto, a desindustrialização reflete diretamente no poder dos sindicatos e associações de trabalhadores que perdem seu poder de negociação e até mesmo sua desintegração enquanto representante da classe trabalhadoras. Conforme Camargos (2009, p.112) a falência do modelo desenvolvimentista por parte do Estado e a abertura econômica que permitiu a entrada do neoliberalismo e da globalização representou um movimento denominado "desestruturação produtiva" que foi amplamente deletéria para economia do país.

Essa "desestruturação produtiva", que na verdade trata-se do fim do capitalismo produtivo, afetou diversos setores da economia, culminado no fechamento de grandes empresas, algumas pertencentes aos setores de ponta, tais como: automotivo, alimentação, têxtil, eletroeletrônicos. O fim da industrialização, principalmente num país como o nosso, traz enormes consequências para o desenvolvimento social, gerando desemprego e ampliando as desigualdades sociais.

Os sindicatos e associações de trabalhadores de alguma forma tiveram um certo protagonismo na tentativa de protelar os danos causados pela "desestruturação produtiva". Na visão de Camargos (2009, p.171) O movimento sindical foi capaz de impedir o agravamento do arrocho salarial, num cenário macroeconômico caracterizado por elevadas taxas de inflação. 

A autora ainda afirma que o sindicalismo brasileiro contribui para afirmar a cidadania política dos trabalhadores e aproximá-los de suas entidades representativas (CAMARGOS, 2009, p.171).

As forças do capital ao desmontar sua estrutura produtiva, para entra de vez no modelo financeiro trouxe grandes danos para representatividade dos trabalhadores. A mesma opinião é corroborada por Camargos (2009, p.169) ao dizer que a:

Dificuldade de a representação sindical atuar num espaço mais amplo e ter suas ações limitadas que decorre das profundas desigualdades socioeconômicas existentes no país e da histórica desconexão entre crescimento econômico e distribuição de renda, que dificultam a mobilização dos trabalhadores.  

Com isso, podemos falar que existe neste contexto toda uma herança histórico-cultural, pautada nas raízes escravocrata que impede toda organização de luta por parte dos trabalhadores. Alia-se também a esta falta de organização dos trabalhadores a própria desestruturação do sistema de produção provocado pelo capitalismo financeiro, que deu lugar ao antigo sistema fabril.    

A desindustrialização abre enormes precedentes para entrada do capitalismo financeiro, a qual os grandes investidores não se preocupam com a produção de mercadorias, mas sim com a geração de lucros através dos juros e dividendos obtidos pela aquisição de ações e títulos que os remuneram.

As relações de trabalho tornaram-se precárias com a expansão do capitalismo financeiro, situação em que os sindicatos perderam sua força de negociação a partir do fim do século XX, que se estende até o momento. Há uma queda real dos salários e os seus instrumentos de valorização ficaram prejudicados. O processo produtivo não é mais a lógica do capital, mas sim o capital financeiro.

Nos países desenvolvidos a desindustrialização não tem sido tão traumática, pelo fato de ter uma população mais escolarizada. Neles o fim da indústria como conhecemos, se fez com a compensação das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), além do fortalecimento de empresas desenvolvedoras de aplicativos e softwares baseadas em redes e na internet.

As tecnologias de informação e comunicação (TICs) se baseiam especificamente em serviços torna-se o principal meio para criação de novas frentes de trabalho, absorvendo grande parte da mão de obra da antiga indústria. Na tentativa de responder ás necessidades desse novo mercado as universidades e escolas técnicas procuram adequar seu ensino com vistas para essa nova realidade tecnológica e formar profissionais voltados para esses setores. Os países desenvolvidos saíram na frente nessa corrida tecnológica e passaram a deter a maioria de todas patentes, direitos autorais, direitos de marca, dispondo de mecanismos de proteção contra a produção por outros países de suas descobertas científicas. Tudo isso traz um ganho muito maior que os antigos métodos fabris de produção.

Agora o mundo entrou no que chamamos da era da economia da informação e conhecimento. O que prevalece nesta economia da informação e conhecimento é a capacidade de o trabalhador ter competências intelectuais e não mais a força física, ser capaz de pensar os problemas da empresa, solucioná-las e tomar as decisões mais assertivas. Não existe mais lugar para o trabalho braçal, que não exige escolaridade e educação formal. Todos nós agora seremos pagos para pensar e resolver problemas. O mais interessante desta nova economia, denominada de economia da informação e conhecimento, é o fato dela conseguir aliar muito bem o capital financeiro e tecnologia da informação, criando um novo conceito em termos de capital e trabalho.

As grandes mudanças no mundo do trabalho foram bastantes negativas para o trabalhador, que perdeu sua condição de estabilidade e trabalho integral. Na obra: O imaterial, de autoria do filosofo Austríaco André Gorz (2005, p.24) as grandes corporações americanas remodelaram totalmente seus quadros de pessoal, onde mais de 90%, segundo o autor, absorve uma massa variável de colaboradores externos, substitutos, temporários e autônomos. A grande maioria são profissionais com alto grau de escolaridade e conhecimento. Esse tipo de vínculo desonera essas grandes empresas de encargos trabalhistas, indenizações e licenças, indicio claro da precarização do trabalho. Para Gorz (2005, p.26) isso representa a produção do si mesmo, dentro de uma perspectiva em que tudo transforma-se em mercadoria, tendo como medida o dinheiro – isso é o mais puro neoliberalismo.      

Assim nasce o trabalhador do século XXI, que está o tempo inteiro conectado a uma plataforma tecnológica de rede, que nela se produz conteúdo muitas vezes sem remuneração para torná-la mais eficaz, produtiva e geradora de receitas. Portanto aqui colocamos o conceito de monetização, quando essas plataformas de rede torna-se lucrativa, à custa de uma mais-valia proveniente do usuário conectado em tempo integral, e, no entanto, não recebe nada por utilizá-la e com ela interagir. Trata-se de uma troca injusta de via - única, em que apenas a plataforma obtém lucro. Quanto ao resto, não passam de usuários que alimentam o sistema com seus conhecimentos e muitos desejos de consumo.

Dessa forma trabalhamos no modelo 24x7, nem nos damos conta disso. Fomos completamente afastados do mundo real, produtivo e dotado de direitos sociais, trabalhistas e políticos. Será que viramos máquinas, zumbis ou qualquer coisa do gênero e por isso nos tornamos menos humanos do que éramos quando havia o mundo fabril.

Talvez, nos transformamos numa espécie de homem-máquina, um ser híbrido, um androide, algo que certamente não gostaríamos de ver diante de um espelho. Certamente perderíamos a capacidade de desconectarmos e usufruir daquilo que restaria da natureza, por não sermos mais humano.

Será que essa nova economia, cujo sua base é a informação e o conhecimento, nos encetou de vez para a contemporaneidade ou simplesmente fomos enganados pela tecnologia que nos dominou, criando um mundo virtual, irreal e dotado de ilusões. Vejam como os aplicativos nos escravizam, trabalhamos quase de graça ou sem qualquer remuneração para que elas sejam cada vez mais eficientes em nos tornar dependentes, tecnologicamente falando. Cada vez mais cresce o número de moto-entregadores, motoristas de aplicativos, Youtubers, programadores, analistas de dados, criadores de conteúdo que precisam correr dia e noite para monetizar-se e obter algum ganho exigido pelo aplicativos. 

Do outro lado, encontram-se os criadores, empreendedores, investidores que irão fazer desses aplicativos, sistemas e softwares seu meio de produção, a qual irão lançá-los no mercado financeiro. Alguns desses projetos poderão se realizar e vir a ser uma grande "start up" que abrirá seu capital e terá suas ações negociadas na Bolsa de Valores, pagando juros e dividendos para os investidores. Outras, não terão a mesma sorte e vão morrer antes mesmo de alcançar o sucesso.   

Francamente, dizer que o capitalismo seja ele produtivo, improdutivo ou qualquer outra denominação que tenha, jamais foi natural, sendo tal afirmação uma grande bobagem. Digo mais, o capitalismo é um produto do homem, uma criação humana, da mesma forma que criamos Deus, ou para aqueles que apostam na religião somos uma criatura divina concebida pelas mãos de Deus.

Se o capitalismo retira da natureza os bens naturais, sejam eles quaisquer sejam: metais, minerais, água, terra, madeira é o transforma, modela e assim cria produtos (mercadorias) para obter lucro por meio do dinheiro (equivalente universal) como forma de facilitar as trocas. Jamais poderíamos pensar o capitalismo como algo natural nascido da força divina ou que brota das entranhas do solo. Pois, a mão do homem não tem capacidade de criar coisas naturais, nem mesmo em pensamento.

Nos cabe apenas, a capacidade de modelar os elementos da natureza em coisas. Isto, desde dos tempos antigos, medievais e talvez mais longínquo aos homens sapiens ou neandertais que desenvolveram a capacidade de fazer das pedras facas e lanças para obter alimentos.

Realmente acredito que o capitalismo mereça uma revisão profunda em suas estruturas, por conta de suas crises constantes provocada pelo "homem-economicus". Um primeiro aspecto que exige essa revisão está no fato de apropriarmos dos recursos naturais e dele criar mercadorias, submetendo os homens numa condição de proletário, com isso exploramos sua força de trabalho para retirar o máximo de lucro.

Num segundo momento, este com aspecto mais tecnológico e dotado de dispositivos, aplicativos e todo aparato de rede impõem a sociedade um falso conhecimento, o que impera é a mais completa alienação diante da dominação do intelecto. Se vive num mar de desinformação contida nesses aparatos.

Mesmo com tanto avanço tecnológico, inovação e desenvolvimento de aplicações de ponta, não conseguimos debelar o principal problema que aflige a humanidade - ela - a desigualdade social, que mata milhões de fome pelo planeta, que gera problemas crônicos de saúde, que impede milhões de crianças frequentar uma escola. A grande maioria da população do planeta sobrevive na mais completa miséria. Volto a insistir que a fome, a falta de política básica de saúde, desemprego e a falta de urbanização das comunidades carentes como as favelas do rio de Janeiro, Índia, África do Sul é uma endemia política gerada pela falta de um Estado. Mesmo Estado que faz locupletar as grandes corporações. Ainda assim, não vamos nos esquecer, temos os países da África em que milhões de crianças morrem por desnutrição e doenças parasitárias.

Com o empobrecimento do mundo em geral, devido ao desemprego causado principalmente pela desindustrialização, a presença do Estado neste momento nunca foi tão necessária, justamente para se criar uma política de renda básica capaz de prover as necessidades mínimas da população economicamente inativa, ou seja, aqueles que não tem emprego.

Assistimos nestes últimos tempos um enorme contingente de pessoas que sobrevivem na informalidade e no subemprego. Encontra-se nessa situação vendedores de balas, flanelinhas, lavadores de carros, vendedores de comida de rua, além de outros que antes era visto apenas em grandes centros urbanos, mas a situação já é uma realidade em cidades médias. Muitos deles vivem na própria rua, por não terem capacidade de pagar o aluguel de um imóvel.

A ideia da renda básica universal, que é consenso entre vários economistas e parte dos políticos de esquerda no mundo seria um a solução viável para mitigar as desigualdades sociais e ao mesmo tempo contribuir para girar a roda da economia e do consumo. Porém assistimos o contrário, vemos o Estado se eximir de suas responsabilidades com o social e entregar suas riquezas para as mãos do capital. Trata-se do Estado mínimo, que não tem nenhuma pretensão de criar políticas públicas e nem mesmo serviços de utilidade para a população.

A palavra do Estado neoliberal é uníssona, não gastar e deixar que a iniciativa privada ofereça seus serviços à sociedade. Portanto, ao lidar com a iniciativa privada, o Estado fornece todo seu aparato, sobretudo se existe intenções eleitoreiras envolvidas.   

Dessa maneira vamos sobrevivendo à instabilidade social, o tédio de conviver com a iniquidade imposta por uma democracia representativa, um tanto capenga, que a cada 4 anos elege mais do mesmo - seja de esquerda ou de direita - cuja função destes representantes é fazer o jogo do capitalismo e arreganhar-se para o neoliberalismo. Estamos em mundo cansativo, indolente, que se arrasta não para lutar e mudar os "status quo", mas sim para ficar estático, apático e alheio ás mudanças.

Nesse intervalo, a renda se desloca de forma ascendente para uma minoria pertencente as elites, que abocanham com suas bocas largas o grosso de quase toda renda per capita, ou seja, de tudo aquilo que o trabalhador produz mesmo sem indústria. Enquanto, a grande maioria da população, uma massa amorfa, seca, pálida não fica nem com 20% da renda gerada pelo seu próprio suor. A desigualdade na divisão da renda per capita do país e abissal. Por isso temos um capitalismo tão selvagem, em que uns pouquíssimos dominam toda a riqueza produzida, de outro lado aqueles milhões que morrem de fome. 

Possivelmente, fica a dúvida a respeito da crise do capitalismo. Sendo que a indústria farmacêutica, por exemplo, tem lucrado tanto com as patentes de medicamentos. Até mesmo a indústria automobilística modificou seu modelo de negócio, passando a não mais lucrar com a venda de veículos somente, mas obter retorno com o financiamento e cobrança de juros. Isso demonstra a enorme capacidade de mutação do capitalismo, indo do produtivo para o improdutivo, entrando num ciclo do capital financeiro e cognitivo. Essa capacidade de mutação não se restringe somente ao capitalismo, pois é visível nas pessoas e nas cidades.

terça-feira, 20 de julho de 2021

A educação no capitalismo cognitivo


O Saber, as trocas de conhecimento e experiências, a inovação cientifica e a codificação do conhecimento tácito em explícito (socialização dos saberes) tem toda sua base nos modelos de educação, propagado a mais 800 anos. As universidades, escolas técnicas, centros de pesquisas, bibliotecas, hospitais universitários, faculdades, museu e arquivos são instituições devidamente concebidas para que o fluxo de conhecimento ocorra de maneira formal e também informal, atuantes na produção científica e artística. Portanto fica a pergunta, seriam essas instituições ideais para fortalecer o capitalismo cognitivo, justamente por entregar “mercadorias” provenientes do trabalho imaterial?

Talvez a resposta esteja em todo contexto do livro e nos direciona uma afirmação positiva. Dado que neste parágrafo especificamente, podemos dizer que há um interesse das forças privatistas em adentrar por meio do capital financeiro nestas instituições. No interior do projeto neoliberal ter em suas mãos a educação, principalmente técnica e universitária, é uma forma de acumulação imaterial, por sua vez expropria grande parte da população do direito à educação, já que o Estado não tem mais o domínio sobre ela. Assim, toda pesquisa e inovação, também como a criação de patentes não pertence mais a ordem dos comuns.  

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Em busca de uma renda básica universal

 

O conceito de renda básica universal perpassa, ou deveria perpassar por toda discussão nas agendas progressistas. Na definição de Fumagalli (p.295) a renda básica pode ser entendida como uma distribuição monetária que visa garantir ao cidadão uma vida mais digna, deve ser uma renda universal e, portanto, imbricada aos direitos humanos. 

Sobre a renda básica, Fumagalli ainda afirma que seu conceito aparece como instrumento de bem-estar social, justamente por visar a distribuição de recursos públicos e de extrema importância no contexto do capitalismo cognitivo. Como diz o próprio autor: "a renda básica não tem é um presente, um instrumento contra a pobreza, mas uma pode assumir o papel de reduzir a pobreza, além de ser funcional no processo de acumulação; incrementar a inovação e a aprendizagem, por fim desenvolver o capital humano. 

No entanto, as forças conservadoras do capitalismo cognitivo veem a política de renda básica como um elemento de desestruturação do controle hierárquico e social do sistema, já que os trabalhadores teoricamente teriam maior capacidade de negociação.

A efetivação da renda básica depende, antes de tudo, de uma ampla reforma no modelo tributário e fiscal. Uma reforma progressiva e verticalizada, cuja maior parte das contribuições venham das camadas mais ricas, na tentativa de fazer uma distribuição menos desigual possível.

Nesse momento em que o planeta foi assolado por uma sindemia, o programa de renda básica universal seria o ponto chave para combate-la, ao passo que o trabalhador não pode estar na rua e muito menos em seu ambiente de trabalho. A renda básica, junto ao lockdown seria a única alternativa capaz de liquidar o vírus.

terça-feira, 8 de junho de 2021

As frentes populares – o comum em redes

Uma frente popular de direitos neste caso pode ser definida nas palavras de Fumagalli (p.294), como uma comunidade de indivíduos livres que atuam como pessoas em comunidade. Portanto são pessoas que em seus espaços territoriais, sociais e econômicos atuam conjuntamente de maneira solidaria, na tentativa de pelo menos mitigar os problemas sociais.  

A ação isolada dos sindicatos e associações de trabalhadores é um tanto ineficaz e insuficiente perante a grande demanda e vulnerabilidade social e econômica daqueles que estão em situação de extrema pobreza. Faz-se mister a conjunção de uma frente popular ampla com base numa linguagem comum e em ações comuns para enredar-se numa teia de solidariedade. Essa, talvez seja, a genuína prática democrática participativa vinda daquilo que é o comum, proposto por Dardot e Laval.

No capitalismo cognitivo, a acumulação segundo Fumagalli (2010, p.323) é bioeconômica, que se realiza no desenvolvimento dos fluxos das redes, puramente imaterial. Isso, torna cada vez mais diminuto a participação coletiva e o comum sucumbe perante o mercado financeiro.

Numa bioeconomia somente as ações vindas de um corpo em movimento, em luta será capaz de transpor as atuais formas de alienação e expropriação do trabalho imaterial que servem as estruturas do capitalismo cognitivo. Por isso, a criação de uma consciência que se mova em uma direção autônoma e capaz de enfrentar os duros golpes que atingem toda sociedade.               

Ainda, a respeito das ideias do comum, o aparecimento das frentes populares, formada por setores mais progressistas da sociedade civil unem-se em prol de demandas especificas da população. Especificamente, nesse momento de sindemia, as frentes populares ganham força por meio das tecnologias de informação e comunicação (TICs), onde o uso das redes sociais aparece como um canal de abertura para discussão de temos ligados à política e economia, além de servir para movimentos de apoio e solidariedade.

As frentes populares agregam em seu interior diversos matizes da ideologia do campo progressista, contam com a participação de entidades sindicais, representantes da igreja, de partidos políticos e movimentos sociais (negros, indígenas, LGBTs, mulheres e outros), que juntos enredam um importante círculo de compartilhamento de conhecimentos e trocas de experiências. Essas frentes populares beneficiam-se das redes sociais numa comunicação mais direta, síncrona e com objetivo de alcançar o maior número de espectadores, num trabalho coletivo e de ordem social. Cabem as elas o papel de porta-voz da democracia participativa, ou seja, levar demandas especificas de um coletivo para as representações políticas instituídas.

Enquanto o capitalismo cognitivo concentra-se no indivíduo, ou seja, toda produção e reprodução imaterial está calcada numa única célula e na identidade. As frentes populares procuram quebrar essa lógica do individualismo e do identitarismo (o igual, o mesmo, o idem), justamente por aceitar e celebrar o diferente (o outro). Tal atitude permite agregarmos diferentes fazeres e saberes, conhecimentos tácitos, que de certo modo ampliam as trocas de experiências entre seus membros.

Na verdade, as frentes populares formam uma enorme rede de conhecimentos informais numa trama de nós e laços, que em conjunto realizam a acumulação de novos saberes. O entrelaçamento e os fluxos dessas redes permitem as frentes populares terem grande influência em muitas decisões tomadas pelos entes políticos.

Em alguns aspectos os trabalhos desenvolvidos pelas frentes populares caracterizam-se pela regionalidade e localidade de suas ações, atuando de forma consistente em pequenas cidades, bairros e dependendo da ação desenvolvida, atuam nos estados.

O comum descrito por Dardot e Laval é o inverso do individual e do identitarismo que o capitalismo cognitivo nos impõem goela abaixo. O comum congrega o coletivo, aquilo pertencente a todos e a ninguém aos mesmo tempo. Pois, o corte transversal do coletivo outorga sustentabilidade para a democracia participativa, onde diferentes grupos de pensamentos diversos unem-se ao redor de um bem comum. 

No coletivo cabe o progressismo dos sindicatos, entidades e associações já tão definhadas pelas mudanças nas relações de trabalho; os conselhos formados por representantes da sociedade civil, e traz fortemente a formação das frentes populares que agregam pessoas, no intuito de realizar ações em favor da população. Por ser parte do comum, as frentes populares não desejam uma organização jurídica e formal, preferem manter seu caráter informal e atuar numa rede de relacionamento, a qual cada participante move-se em prol do bem comum.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2017. 647p.

FUMAGALLI, Andrea, Bioeconomia y capitalismo cognitivo: hacia um nuevo paradigma de acumulación. Traducción del: Antônio Antôn Hernandez elt al. Madrid: Traficante de Sueños, 2010. 336p.  



segunda-feira, 3 de maio de 2021

O desabafo da classe trabalhadora


Pergunte-nos, o que tanto desejamos! Responderemos em alto e bom som, uma narrativa – mas não uma qualquer – tem que ser a narrativa com o poder de abalar as antigas estruturas do sistema, capaz de desconstruir os mitos, as crenças e o valores de uma cultura dominante, pautada na expropriação, na alienação e na espoliação da força de trabalho. Com isso, reconstruir a cultura dos antepassados, que idolatra os deuses da natureza, como o sol, a lua, a chuva e valoriza o trabalho coletivo.

Se somos trabalhadores, merecemos o pão, o vinho, o salário digno, a igualdade e a liberdade de ser humano, mas - antes de tudo – a narrativa e aí sim produziremos histórias. A nossa história, de lutas e de conflitos – para utilizarmos contra a exploração. Porque, o trabalho produz não só mercadorias, produtos que atendem o consumo dos mais ricos, mas também gera uma série de outros fatores comuns ao mundo econômico como riqueza, desigualdades, escassez e crises.

A narrativa serve de instrumento para construirmos cenários através da linguagem, que com seus símbolos e signos nos tornamos capazes de enfrentar as adversidades impostas pela opressão dos sistemas, sejam eles totalitários, ou mesmo aqueles pseudodemocráticos. Infelizmente na contemporaneidade, as falsas narrativas dominam como se fossem autênticas, mas não são. Pois, utilizam uma linguagem semelhante a nossa, então, a empacotam e distribuem nos mais variados meios de comunicação de massa e para muitos, tal linguagem, apresenta-se como normal e palatável. Essa, é a narrativa da opressão invisível, que opera no domínio das mentes e coroações.

Essa linguagem formatada em pacotes e composta de falsas narrativas nos jogou para aquilo que Fumagalli denomina de bioeconomia, ou seja, a economia da vida que é parte do biopoder foucaultiano. Assunto que veremos nos próximos capítulos deste livro. Portanto, somente a verdadeira narrativa, vindas dos trabalhadores e de sua cultura, terá condições de nos retirar dos espaços de dominação e da opressão invisível, e nos colocar novamente no eixo da nossa história.                 

terça-feira, 6 de abril de 2021

A desindustrialização


Na primeira metade do século XX, a indústria automobilística representou o suprassumo do capitalismo produtivo e da tecnocracia, que fomentou o desenvolvimento de vários outros setores, principalmente a indústria de base. Os setores industriais contribuíram fortemente para o crescimento das cidades e com apoio do estado ampliam estradas, abriram rodovias, fortaleceram o comércio e serviços, além de desenvolver as pequenas oficinas e fábricas. Mas, na segunda metade deste século XX, os setores industriais começam a sofre sua derrocada. O capital passa a transferir sua vertente produtiva para uma vertente financeira que não exige custos com matérias-primas, instalações físicas complexas, maquinários e mão de obra. Inicia-se a desindustrialização.

O processo de desindustrialização teve seu marco a partir dos anos 80, coincidindo com a globalização e o fim do regime socialista no leste europeu. Época da queda do muro de Berlim e pouco depois o fim da URSS. A velha indústria não encontra mais fôlego para sobreviver, diante das grandes inovações tecnológicas e da robotização.

A indústria automobilística é um exemplo real desses novos tempos, ao passo que substitui trabalhadores por robôs capazes de realizar todo trabalho de fabricação e montagem dos automóveis.

O mesmo ocorre em outros setores industriais, e tal fato obriga o operário a buscar novas formas de resistir à desindustrialização, indo então para o setor de serviços ou comércio sujeito a ganhar um salário bem menor. Portanto, a desindustrialização reflete diretamente no poder dos sindicatos e associações de trabalhadores que perdem seu poder de negociação e até mesmo sua desintegração enquanto representante da classe trabalhadoras. Conforme Camargos (2009, p.112) a falência do modelo desenvolvimentista por parte do Estado e a abertura econômica que permitiu a entrada do neoliberalismo e da globalização representou um movimento denominado "desestruturação produtiva" que foi amplamente deletéria para economia do país.

Essa "desestruturação produtiva", que na verdade trata-se do fim do capitalismo produtivo, afetou diversos setores da economia, culminado no fechamento de grandes empresas, algumas pertencentes aos setores de ponta, tais como: automotivo, alimentação, têxtil, eletroeletrônicos. O fim da industrialização, principalmente num país como o nosso, traz enormes consequências para o desenvolvimento social, gerando desemprego e ampliando as desigualdades sociais.

Os sindicatos e associações de trabalhadores de alguma forma tiveram um certo protagonismo na tentativa de protelar os danos causados pela "desestruturação produtiva". Na visão de Camargos (2009, p.171) O movimento sindical foi capaz de impedir o agravamento do arrocho salarial, num cenário macroeconômico caracterizado por elevadas taxas de inflação. 

A autora ainda afirma que o sindicalismo brasileiro contribui para afirmar a cidadania política dos trabalhadores e aproximá-los de suas entidades representativas (CAMARGOS, 2009, p.171).

As forças do capital ao desmontar sua estrutura produtiva, para entra de vez no modelo financeiro trouxe grandes danos para representatividade dos trabalhadores. A mesma opinião é corroborada por Camargos (2009, p.169) ao dizer que a:

dificuldade da representação sindical atuar num espaço mais amplo e ter suas ações limitadas que decorre das profundas desigualdades socioeconômicas existentes no país e da histórica desconexão entre crescimento econômico e distribuição de renda, que dificultam a mobilização dos trabalhadores.  

Com isso, podemos falar que existe neste contexto toda uma herança histórico-cultural, pautada nas raízes escravocrata que impede toda organização de luta por parte dos trabalhadores. Alia-se também a esta falta de organização dos trabalhadores a própria desestruturação do sistema de produção provocado pelo capitalismo financeiro, que deu lugar ao antigo sistema fabril.    

A desindustrialização abre enormes precedentes para entrada do capitalismo financeiro, a qual os grandes investidores não se preocupam com a produção de mercadorias, mas sim com a geração de lucros através dos juros e dividendos obtidos pela aquisição de ações e títulos que os remuneram.

As relações de trabalho tornaram-se precárias com a expansão do capitalismo financeiro, situação em que os sindicatos perderam sua força de negociação a partir do fim do século XX, que estende-se até o momento. Há uma queda real dos salários e os seus instrumentos de valorização ficaram prejudicados. O processo produtivo não é mais a lógica do capital, mas sim o capital financeiro.

Nos países desenvolvidos a desindustrialização não tem sido tão traumática, pelo fato de ter uma população mais escolarizada. Neles o fim da indústria como conhecemos, se fez com a compensação das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), além do fortalecimento de empresas desenvolvedoras de aplicativos e softwares baseadas em redes e na internet.

As tecnologias de informação e comunicação (TICs) se baseiam especificamente em serviços torna-se o principal meio para criação de novas frentes de trabalho, absorvendo grande parte da mão de obra da antiga indústria. Na tentativa de responder ás necessidades desse novo mercado as universidades e escolas técnicas procuram adequar seu ensino com vistas para essa nova realidade tecnológica e formar profissionais voltados para esses setores. Os países desenvolvidos saíram na frente nessa corrida tecnológica e passaram a deter a maioria de todas patentes, direitos autorais, direitos de marca, dispondo de mecanismos de proteção contra a produção por outros países de suas descobertas científicas. Tudo isso traz um ganho muito maior que os antigos métodos fabris de produção.

Agora o mundo entrou no que chamamos da era da economia da informação e conhecimento. O que prevalece nesta economia da informação e conhecimento é a capacidade de o trabalhador ter competências intelectuais e não mais a força física, ser capaz de pensar os problemas da empresa, solucioná-las e tomar as decisões mais assertivas. Não existe mais lugar para o trabalho braçal, que não exige escolaridade e educação formal. Todos nós agora seremos pagos para pensar e resolver problemas. O mais interessante desta nova economia, denominada de economia da informação e conhecimento, é o fato dela conseguir aliar muito bem o capital financeiro e tecnologia da informação, criando um novo conceito em termos de capital e trabalho.

As grandes mudanças no mundo do trabalho foram bastantes negativas para o trabalhador, que perdeu sua condição de estabilidade e trabalho integral. Na obra: O imaterial, de autoria do filosofo Austríaco André Gorz (2005, p.24) as grandes corporações americanas remodelaram totalmente seus quadros de pessoal, onde mais de 90%, segundo o autor, absorve uma massa variável de colaboradores externos, substitutos, temporários e autônomos. A grande maioria são profissionais com alto grau de escolaridade e conhecimento. Esse tipo de vínculo desonera essas grandes empresas de encargos trabalhistas, indenizações e licenças, indicio claro da precarização do trabalho. Para Gorz (2005, p.26) isso representa a produção do si mesmo, dentro de uma perspectiva em que tudo transforma-se em mercadoria, tendo como medida o dinheiro – isso é o mais puro neoliberalismo.      

Assim nasce o trabalhador do século XXI, que está o tempo inteiro conectado a uma plataforma tecnológica de rede, que nela se produz conteúdo muitas vezes sem remuneração para torná-la mais eficaz, produtiva e geradora de receitas. Portanto aqui colocamos o conceito de monetização, quando essas plataformas de rede torna-se lucrativa, à custa de uma mais-valia proveniente do usuário conectado em tempo integral, e, no entanto, não recebe nada por utilizá-la e com ela interagir. Trata-se de uma troca injusta de via - única, em que apenas a plataforma obtém lucro. Quanto ao resto, não passam de usuários que alimentam o sistema com seus conhecimentos e muitos desejos de consumo.

Dessa forma trabalhamos no modelo 24x7, nem nos damos conta disso. Fomos completamente afastados do mundo real, produtivo e dotado de direitos sociais, trabalhistas e políticos. Será que viramos máquinas, zumbis ou qualquer coisa do gênero e por isso nos tornamos menos humanos do que éramos quando havia o mundo fabril.

Talvez, nos transformamos numa espécie de homem-máquina, um ser híbrido, um androide, algo que certamente não gostaríamos de ver diante de um espelho. Certamente perderíamos a capacidade de desconectarmos e usufruir daquilo que restaria da natureza, por não sermos mais humano.

Será que essa nova economia, cujo sua base é a informação e o conhecimento, nos encetou de vez para a contemporaneidade ou simplesmente fomos enganados pela tecnologia que nos dominou, criando um mundo virtual, irreal e dotado de ilusões. Vejam como os aplicativos nos escravizam, trabalhamos quase de graça ou sem qualquer remuneração para que elas sejam cada vez mais eficientes em nos tornar dependentes, tecnologicamente falando. Cada vez mais cresce o número de moto-entregadores, motoristas de aplicativos, Youtubers, programadores, analistas de dados, criadores de conteúdo que precisam correr dia e noite para monetizar-se e obter algum ganho exigido pelo aplicativos. 

Do outro lado, encontram-se os criadores, empreendedores, investidores que irão fazer desses aplicativos, sistemas e softwares seu meio de produção, a qual irão lançá-los no mercado financeiro. Alguns desses projetos poderão se realizar e vir a ser uma grande "start up" que abrirá seu capital e terá suas ações negociadas na Bolsa de Valores, pagando juros e dividendos para os investidores. Outras, não terão a mesma sorte e vão morrer antes mesmo de alcançar o sucesso.   

Francamente, dizer que o capitalismo seja ele produtivo, improdutivo ou qualquer outra denominação que tenha, jamais foi natural, sendo tal afirmação uma grande bobagem. Digo mais, o capitalismo é um produto do homem, uma criação humana, da mesma forma que criamos Deus, ou para aqueles que apostam na religião somos uma criatura divina concebida pelas mãos de Deus.

Se o capitalismo retira da natureza os bens naturais, sejam eles quaisquer sejam: metais, minerais, água, terra, madeira é o transforma, modela e assim cria produtos (mercadorias) para obter lucro por meio do dinheiro (equivalente universal) como forma de facilitar as trocas. Jamais poderíamos pensar o capitalismo como algo natural nascido da força divina ou que brota das entranhas do solo. Pois, a mão do homem não tem capacidade de criar coisas naturais, nem mesmo em pensamento.

Nos cabe apenas, a capacidade de modelar os elementos da natureza em coisas. Isto, desde dos tempos antigos, medievais e talvez mais longínquo aos homens sapiens ou neandertais que desenvolveram a capacidade de fazer das pedras facas e lanças para obter alimentos.

Realmente acredito que o capitalismo mereça uma revisão profunda em suas estruturas, por conta de suas crises constantes provocada pelo "homem-economicus". Um primeiro aspecto que exige essa revisão está no fato de apropriarmos dos recursos naturais e dele criar mercadorias, submetendo os homens numa condição de proletário, com isso exploramos sua força de trabalho para retirar o máximo de lucro.

Num segundo momento, este com aspecto mais tecnológico e dotado de dispositivos, aplicativos e todo aparato de rede impõem a sociedade um falso conhecimento, o que impera é a mais completa alienação diante da dominação do intelecto. Se vive num mar de desinformação contida nesses aparatos.

Mesmo com tanto avanço tecnológico, inovação e desenvolvimento de aplicações de ponta, não conseguimos debelar o principal problema que aflige a humanidade - ela - a desigualdade social, que mata milhões de fome pelo planeta, que gera problemas crônicos de saúde, que impede milhões de crianças frequentar uma escola. A grande maioria da população do planeta sobrevive na mais completa miséria. Volto a insistir que a fome, a falta de política básica de saúde, desemprego e a falta de urbanização das comunidades carentes como as favelas do rio de Janeiro, Índia, África do Sul é uma endemia política gerada pela falta de um Estado. Mesmo Estado que faz locupletar as grandes corporações. Ainda assim, não vamos nos esquecer, temos os países da África em que milhões de crianças morrem por desnutrição e doenças parasitárias.

Com o empobrecimento do mundo em geral, devido ao desemprego causado principalmente pela desindustrialização, a presença do Estado neste momento nunca foi tão necessária, justamente para se criar uma política de renda básica capaz de prover as necessidades mínimas da população economicamente inativa, ou seja, aqueles que não tem emprego.

Assistimos nestes últimos tempos um enorme contingente de pessoas que sobrevivem na informalidade e no subemprego. Encontra-se nessa situação vendedores de balas, flanelinhas, lavadores de carros, vendedores de comida de rua, além de outros que antes era visto apenas em grandes centros urbanos, mas a situação já é uma realidade em cidades médias. Muitos deles vivem na própria rua, por não terem capacidade de pagar o aluguel de um imóvel.

A ideia da renda básica universal, que é consenso entre vários economistas e parte dos políticos de esquerda no mundo seria um a solução viável para mitigar as desigualdades sociais e ao mesmo tempo contribuir para girar a roda da economia e do consumo. Porém assistimos o contrário, vemos o Estado se eximir de suas responsabilidades com o social e entregar suas riquezas para as mãos do capital. Trata-se do Estado mínimo, que não tem nenhuma pretensão de criar políticas públicas e nem mesmo serviços de utilidade para a população.

A palavra do Estado neoliberal é uníssona, não gastar e deixar que a iniciativa privada ofereça seus serviços à sociedade. Portanto, ao lidar com a iniciativa privada, o Estado fornece todo seu aparato, sobretudo se existe intenções eleitoreiras envolvidas.   

Dessa maneira vamos sobrevivendo à instabilidade social, o tédio de conviver com a iniquidade imposta por uma democracia representativa, um tanto capenga, que a cada 4 anos elege mais do mesmo - seja de esquerda ou de direita - cuja função destes representantes é fazer o jogo do capitalismo e arreganhar-se para o neoliberalismo. Estamos em mundo cansativo, indolente, que se arrasta não para lutar e mudar os "status quo", mas sim para ficar estático, apático e alheio ás mudanças.

Nesse intervalo, a renda se desloca de forma ascendente para uma minoria pertencente as elites, que abocanham com suas bocas largas o grosso de quase toda renda per capita, ou seja, de tudo aquilo que o trabalhador produz mesmo sem indústria. Enquanto, a grande maioria da população, uma massa amorfa, seca, pálida não fica nem com 20% da renda gerada pelo seu próprio suor. A desigualdade na divisão da renda per capita do país e abissal. Por isso temos um capitalismo tão selvagem, em que uns pouquíssimos dominam toda a riqueza produzida, de outro lado aqueles milhões que morrem de fome. 

Possivelmente, fica a dúvida a respeito da crise do capitalismo. Sendo que a indústria farmacêutica, por exemplo, tem lucrado tanto com as patentes de medicamentos. Até mesmo a indústria automobilística modificou seu modelo de negócio, passando a não mais lucrar com a venda de veículos somente, mas obter retorno com o financiamento e cobrança de juros. Isso demonstra a enorme capacidade de mutação do capitalismo, indo do produtivo para o improdutivo, entrando num ciclo do capital financeiro e cognitivo. Essa capacidade de mutação não restringe somente ao capitalismo, pois é visível nas pessoas e nas cidades.

CAMARGOS, Regina Coeli Moreira. Negociações coletiva: trajetórias e desafios. Belo Horizonte: RTM, 2009. 178p. 


Natureza

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