quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Uma visão neomarxista pelo operaísmo italiano de Negri, Berardi e Mazzucato

Enquanto Berardi nos aponta o caminho do semiocapitalismo, como capitalismo da linguagem, dos signos - ou seja -  da apropriação dos elementos tecnolinguísticos transformados em códigos e algoritmos proporcionados pela tecnologia. Nesse semiocapitalismo o mais-valor se reproduz no uso das plataformas das redes sociais e na comunicação, que se adentra no neoliberalismo. O que não é diferente em Antônio Negri com seu biocapitalismo. Bem, Negri em seu livro coloca que o biocapitalismo (assim como no semiocapitalismo de Berardi) supera o capitalismo industrial, e então adentra os aspectos biológicos (da vida), transformando-a em mercadoria.

Dentro dessa lógica neoliberal, o corpo - na verdade - torna-se um corpo explorado, não mais num sentido do trabalho físico da fábrica, como no capitalismo industrial. Mas sim, num âmbito da financeirização, dos mercados financeiros, como diz Negri: “ a vida deixa de ser tutelada pelo Estado, e não há mais políticas públicas e o bem-estar social. Tudo se transformou numa relação meramente financeira, de trocas, onde o poder estatal deixou de existir.

Tais mudanças atingiram diretamente o mundo do trabalho, cujas relações sociais ficaram bastantes esgarçadas, frouxas, principalmente com enfraquecimento das instituições públicas e das associações que representam os trabalhadores. Podemos dizer, então, que o biocapitalismo seria a exploração da própria vida (da bios) e abrange toda sociedade. Todos nós somos participes dessa nova forma de assunção do capitalismo – que vai além das velhas unidades fabris – dado que a fábrica não mais comporta o homem, apenas máquinas. Com isso, passamos do trabalho material para o trabalho imaterial -  segundo Negri.

Atualmente o capital se aproveita das inovações, das tecnologias, dos algoritmos e da inteligência, uma forma de extrair mais-valor daqueles que estão constantemente conectados às plataformas e redes. O capitalismo se adaptou e soube criar inteligentemente novos modos de exploração e dar continuidade a sua jornada de acumulação. O trabalhador anteriormente explorado apenas pela sua força física, hoje tem o corpo e a mente aprisionados dentro do espectro do trabalho imaterial. A produção imaterial, explica Negri: ”é um importante elemento subjacente do novo capitalismo, que invade por completo a vida”. Tanto Negri, quanto Berardi, apontam que a exploração causada por este capitalismo da vida deriva da nossa capacidade de produzir signos, linguagem e códigos bastante organizados. Entretanto, essas formas de exploração do biocapitalismo (que nos torna meras mercadorias) vem acompanhada de graves consequências não aceitas pacificamente. Haverá, como diz o próprio Negri, lutas de classes no âmbito da biopolítica, sendo que o biopoder capitalista certamente irá gerar contradições, revoltas e violência. As resistências serão visíveis e rupturas hão de acontecer. Por isso, as reflexões fazem-se latente nessa nova configuração do mundo capitalista, já que estamos no sob o jugo de uma sociedade que valoriza apenas a individualidade, em detrimento do coletivo. Para Negri, a ideia de individualidade e coletividade é central, tanto que ele descreve em sua obra – Biocapitalismo:

“Singularidade não é individualidade, multidão é governo por sobre a solidão. Quando esta singularidade não está sozinha, quando a individualidade se dissolve justo diante de nós, acredito que a hipótese de política como ação que constitua comunidade pode dar-se perfeitamente” (NEGRI, p.76).  

Isso demonstra a relevância de discutirmos a respeito do comum, daquilo que nasce do coletivo, da construção das políticas públicas que agregam os ideais da democracia participativa. No entanto, quando essas questões são colocadas na mesa de nossos representantes políticos, imediatamente são jogadas nas gavetas, ou destinadas aos arquivos, simplesmente esquecidas. Mas lembremos, o comum, é aquilo segundo Negri – acessível a todos, não está na posse e sim no uso. Conceito, esse que o capitalismo não compreende – por achar que tudo é privado, assim privam as pessoas de terem acesso a certos bens comuns.

Portanto, temos que quebrar o individualismo e sair dessa lógica insana do identitarismo, para então atingirmos a cultura do coletivo, do comum, naquilo que Negri denominou multidão. Esse é um passo importante para a criação de uma sociedade realmente democrática e participativa, dotada de liberdade coletiva. O conceito de multidão de Negri, em si não compactua com a identidade, pelo contrário, engloba o diferente, o outro e por isso reconhece as minorias que lutam. Pauta-se na diversidade, e não no individualismo criado pelas instâncias neoliberais ou identitários.     

Nesta mesma linha do operaísmo italiano - ou seja - uma corrente de pensamento que fornece uma nova roupagem aos ideais marxistas, Franco Berardi em seu livro Asfixia coloca o poder financeiro como objeto causador da exploração do trabalho cognitivo e precarizado. Sendo que o “general Intellect” de Marx, de acordo com Berardi encontra-se separado do corpo. O autor apresenta-nos o semiocapitalismo (elemento que atua na esfera de um totalitarismo bioeconômico dotado de autômatos tecnolinguísticos, que produz intensas mudanças no tecido social. A respeito das questões políticas e sociais Berardi demonstra os perigos da direita no poder, quando eleitos sucateiam fortemente a educação pública e de maneira maldosa se utilizam das mídias para propagar à alienação.

Há dois conceitos bastante relevantes por Berardi em sua obra. O primeiro é a ideia de enxame, proveniente do campo da biologia, que nos serve de forma análoga para a compreensão do mundo conectado às redes. Dado que enxame refere-se a uma coletividade interconectada em redes, onde o comportamento segue certas normas e regras preestabelecidas. Portanto, as tecnologias da informação permitem que grupos sociais semelhantes possam agir dentro dessa lógica do enxame, por meio das redes e das conexões. Como diz o próprio Berardi – “o semiocapitalismo proporciona essa transformação em enxame. Daí não podemos prever se tal mudança é positiva ou negativa. 

O outro aspecto levantado pelo autor, diz respeito à multidão. Um conceito que revela aglomeração de pessoas, pluralidade - no entanto – sem compartilhar uma direção ou caminho comum. Pois, o conceito de multidão, ao contrário do de rede e de enxame, move-se de forma aleatória em diferentes rumos e rotas. Já as redes na concepção de Berardi pressupõe que os humanos, ou mesmo, máquinas agem organizadamente por meio de procedimentos conexos e interoperativos, onde passam a ser interconectados. Talvez, poderíamos dizer que enxame tem como proposta delinear e organizar a multidão no âmbito do semiocapitalismo.

Mas enfim, o que seria este semiocapitalismo? Se temos o capitalismo financeiro como a produção do dinheiro como mercadoria, em que dinheiro produz dinheiro. É tudo foi mercadorizado, inclusive a vida. Então, a palavra, a linguagem, a comunicação também passou a subsistir no interior dessa lógica financeira. O signo e o significado tornaram-se parte deste ciclo de produção neocapitalista. A própria finança e os mercados financeiros sobrevivem através de um referencial da linguagem, dos signos em que as trocas são pontos luminosos em uma tela de computador ou celulares.

Com a introdução da ideologia neoliberal, faz-se uma ode ao desregramento, a desregulamentação e a exaltação da falsa liberdade conforme Berardi. Tal fato pode ser observado nas obras de Hayek, um difusor ferrenho do neoliberalismo, da falsa liberdade, da qual tudo dever ser livre e com isso o indivíduo é vangloriado em detrimento do coletivo. Esses ideários neoliberais afetam pontualmente a linguagem e ajudam a promover aquilo que Berardi denomina de desreferencialização (a perda de referência). Não há mais paridade – então – tudo é permitido, dado que a falta de referência recai diretamente nas conexões e interações, tornando-as de sobremaneira fracas e deletérias. 

A perda das referências, sejam elas de cunho linguístico, social, político, ou econômico leva a sociedade e o mundo a uma constante crise. Ao perdemos as referências da social-democracia e do socialismo, deixa de existir uma alternativa ao capitalismo e suas crises constantes provocam a mais pura devastação social e econômica. Os mercados financeiros, que agora atuam numa escala binária, simbólica (onde algoritmos determinam a compra e venda de ativos financeiros numa tela) promovem uma gigantesca instabilidade no corpo coletivo, dando poder a falsa liberdade do indivíduo, que agora atua como empreendedor de si mesmo, ou talvez um pequeno investidor no mercado de títulos e ações. A plena exacerbação do eu, aspecto próprio do neoliberalismo.

Para Berardi, a abstração que foi colocada por Marx, é própria do capitalismo, na qual o valor de uso e produção de mercadorias deixam de existir no mundo financeirizado. Portanto, na abstração financeira a circulação do dinheiro e valor são distintos na visão de Berardi, justamente por provocar a desmaterialização do desejo. Assim, complementa o autor – o dinheiro afasta o ser humano de sua capacidade de criação e o coloca no âmbito do consumo.

A rede como espaço de dados não é perene, ao contrário, suas conexões são efêmeras. Porém, estes espaços estão em constante expansão devido as suas características coletivas de produção. Mas, segundo Berardi, os lucros por ela produzidos são de ordem privados. Daí vivemos um novo “modus operandi” do capitalismo moderno – a produção em rede – a qual todos nós trabalhamos em plataformas, seja criando conteúdos, ou aperfeiçoando sistemas de redes, nem ao menos damos conta de que tais plataformas retiram de nós uma mais-valia, ou seja, seus lucros simplesmente provêm do fato de utilizarmos o que elas oferecem. As grandes corporações não estão mais delimitadas num território físico e nem num espaço geográfico, migraram para o mundo virtual e dele abarcam todo o planeta. Conforme Berardi, suas propriedades são imateriais. Pois, os signos, as ideias, a informação, o conhecimento e a linguística basta para sua sobrevivência. Diante disso, passamos a ter uma vida totalmente conectada em redes, para ser mais claro: controlada, onde geramos e disseminamos fluxos de informação. A conexão massiva nos tornou seres binários, cuja interação se perpetua em algoritmos. Esse é o grande mote do semiocapitalismo de Berardi. Somos agora seres máquinicos, que funciona sob a égide de uma estrutura digitalizada, plugados e desplugados conforme os interesses, que na maioria das vezes são contra nossas vontades. Bem é verdade, quando a todo momento somos cancelados nas redes sociais por que discordamos dos outros e não deixamos de omitir nossas opiniões, assim sofremos a punição num mundo pseudodemocrático. Com isso, deixamos de lado os afetos e a materialidade palpável para ingressarmos num capitalismo financeirizado virtual, que segundo Berardi é continuamente recombinado por fragmentos abstratos de propriedade.

Talvez possamos quebrar essa ideia do semiocapitalismo Berardiano, se impusermos o ritmo das ruas e fazer ressurgir a força da inteligência coletiva. No entanto, as ruas encontram-se fechadas em função da sindemia, mesmo assim o clamor criativo do “general intellect” marxista tem que se sobrepor aos dogmas do capital neoliberal. Para isso, as redes se transformariam numa enorme praça, que pavimentaria os anseios dessa coletividade manifestante.

Esse grito da coletividade nas ruas das redes faz-se contra a opressão do capital financeiro, que tem suas bases de apoio nas técnicas e políticas governamentais. No entanto, a linguagem proveniente do coletivo tem sua potência, diz Berardi, para além das esferas de significado, que só o cínico entende. Quando dizemos cínico, não no sentido moderno e atual da palavra, mas numa concepção filosófica, que remete ao pensamento dos filósofos gregos. Aqui, o cinismo de Berardi, vai de encontro à prática de falar a verdade. Já, o cinismo atual, da mentira tem fortes ligações com o mundo capitalista, onde a economia liberal destrói as relações de trabalho e cria um certo darwinismo social. O cínico dos filósofos gregos pressupõe a verdade e a descrença na fé, (Berardi, p.131).

A linguagem é o som, que para Berardi liga-se ao tempo e espaço, dessa forma permite que os seres humanos possam apreende-los conscientemente. A linguagem depende da respiração e do ritmo. Dois elementos fundamentais e preciosos para estabelecer contato com o mundo. A partir da respiração criamos sons e ritmos e assim intensificamos nossa capacidade sonora no cosmos. Enfim, simplesmente podemos fazer barulho e criar ruídos. Assim, a multidão emite sua sonoridade por meio da linguagem e, portanto, expressa suas vontades e desejos. Os ritmos coletivos irão determinar se caminharemos para um enxame; seja nas ruas, ou nas redes, com intuito de criarmos uma nova forma de vida fora dos ditames do capital.

Linguagem, signos, significados são códigos essenciais, atualmente utilizados pelas tecnologias de informação e também construção de algoritmos que determinam às inteligências artificiais, os sistemas em redes, o blockchain e as inovações em computação quântica. Os códigos financeiros, conforme Berardi em seu livro, são colocados à mesa como autômatos da linguagem que modificam muitas das atividades sociais, os padrões de consumo e o estilo de vida. Da mesma forma ocorre com o dinheiro. Então, linguagem e dinheiro tem funções semelhantes dentro do mundo capitalista, utilizando a frase de Berardi – eles são proféticos.

O semiocapitalismo -  o capitalismo da apropriação da linguagem – proferida por Berardi endossa o poder do individual e respinga nas bases do identitarismo. A crítica de Berardi faz-se uníssona a ideologia identitária, por falar do desparecimento da razão universal em substituição à cultura do pertencimento, e como o identitarismo ressentido ocupa o lugar da solidariedade social, então declara-se guerra ao outro, àqueles que não pertencem. O grande mote do mundo atual é pertencer, fazer parte, do contrário, torna-se o outro, o inimigo –muitas vezes invisível. O vírus, também, é o novo inimigo que propaga-se pelo corpo, e o transforma. No tecido social o vírus modifica a comunicação. Por outro lado, vemos o avanço da inteligência artificial como parte das novas tecnologias e são as inovações e a pesquisa que nos levam a uma dimensão cada vez mais estratosférica no campo do conhecimento. Porém, os seres humanos definham mentalmente por causa da ansiedade e depressão. Isso é a controvérsia desse capitalismo cognitivo, financeirizado e linguístico. A digitalização planetária semiótica carregadas de significados tem nos afastado da semântica – do sentido real. Como diz o próprio Berardi, vivemos um mundo liso, plano e sem ranhuras, cuja estética não permite pelos e nem rugosidades que possam atrapalhar o deslizar das conexões, os encaixes devem ser perfeitos e puros.

No cérebro digitalizado não há qualquer traço de prazer, e muitos menos lugar para o sexo, bem – todos são assexuados – bonecas e bonecos de plástico, nos locais das genitálias existe apenas uma superfície lisa. O sensual, o erótico se perdeu num deserto qualquer e neste mesmo caminho atravessou as relações de amizade e o compartilhamento da felicidade. Vivemos hoje uma era de puritanismo barato, de moralismo cínico no sentido atual do termo e de conexões rasas. Numa linguagem truncada com excesso de vocabulário e verborragia infundada, que nos digam os discursos políticos. Esquecemo-nos da comunicação polida, racional e persuasiva. Assim, o discurso neoliberal aproveita dessa fraqueza e vai de encontro à Hayek, quando fala da falsa servidão imposta pelo socialismo. Essa liberdade de Hayek trata-se de uma falácia, um engodo, a partir do momento que o neoliberalismo fragmenta o ser, o individualiza e precariza o tempo. Nisso, Berardi tem toda razão, ao falar que o indivíduo, dentro do neoliberalismo tem sua liberdade destruída, por não passar de um fragmento de tempo precarizado. Mesmo que o indivíduo possa vencer no neoliberalismo “Hayekiano”, isso não engloba o coletivo, a totalidade, resta apenas o sucesso individual junto à competitividade, como esclarece Berardi e, portanto, faltou empatia, compaixão e solidariedade. Sem esses três sentimentos restam apenas amostras de ignorância e cinismo (em sua concepção atual). A ignorância aqui refere-se ao fato de não reconhecermos o outro e de não querer saber sua história de vida. Termos típicos de uma cultura branca, formada pelas camadas mais ricas da sociedade, que colocam os diferentes numa posição de desprezo e de não reconhecimento de sua cultura: a exemplo inclui-se parte da Europa racista e xenofóbica da extrema direita neoliberal.

Essa ignorância por parte desses grupos hegemônicos, nos faz repensar o conceito de identidade. Para Berardi, a identidade está baseada na noção de pertencimento de um passado comum, sendo uma construção do viés psicopolítico que não possui mais o sentido de solidariedade. Portanto, nas palavras do autor a identidade não existe e sim o identitarismo de caráter excludente e agressivo, talvez um elo entre o fascismo do passado de holocausto e algumas ideologias presente neste século XXI, principalmente aqueles ligados ao capitalismo, que em seu processo de acumulação diminui a diversidade cultural e destrói a soberania política dos Estados.

Desse modo, as reformas neoliberais têm de fato conseguido devastar a sociedade, basta olharmos ao nosso redor, como as relações sociais estão totalmente esgarçadas, os índices de desigualdades vêm crescendo ao longo do tempo, onde quase toda riqueza produzida concentra-se nas mãos de apenas uma parcela ínfima da população e bilhões passam fome; sucateamento do patrimônio público; destruição do meio ambiente; desregulamentação das leis que controlam o poder das grandes empresas privadas. 

No livro “Valor de tudo” de Mariana Mazzucato, a relação entre valor e preço são divergentes, pois – cai por terra a máxima econômica de que o valor define-se pelo preço – fator este que modifica por completo as forças de oferta e demanda. Para a autora, o valor está atrelado à produção de bens e serviço; portanto, o valor é um fluxo, um processo que gera riqueza e sendo riqueza um estoque de valor. Dessa forma, podemos atribuir o preço como resultante da oferta e demanda. Já o valor estaria na subjetividade do trabalho.

Essas relações entre valor, preço e trabalho são essenciais para compreendermos a dinâmica do capitalismo, principalmente na época em que vivemos. Sabe-se que o desejo mais íntimo e profundo do capitalismo é crescer, acumular. Enfim, este ser enorme e obeso alimenta-se de tudo que produzimos, sua fome é insaciável e por isso depende de um mercado, seja material ou imaterial. Desse modo, a liberdade deste mercado promove as relações de produção e de trabalho. Na concepção marxista, o trabalho produz mais-valor e consequentemente permite o acumulo de capital. Essa esfera de produção é quem vai determinar o crescimento econômico.

Na visão de Marx, somente o trabalho produtivo gera mais-valor, e nem sempre esse mais-valor retorno para o trabalhador, indo para as mãos dos donos dos meios de produção. No entanto, o capitalismo atual e suas mil e umas denominações, tais como: capitalismo financeiro, capitalismo improdutivo, capitalismo cognitivo, biocapitalismo, entre outras tem suas bases no rentismo (na renda por meio dos juros, em que o lucro dá-se por meio de um sistema de empréstimos). Trata-se da financeirização da sociedade, dado que o setor produtivo deixou, lá nos idos dos anos 70, de ser o motor da economia. A mercadoria de desfaz no ambiente físico e assume um papel cada vez mais intangível, talvez ilusório e imagético; com isso a equação M-D-M (Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria) transforma-se em D-D’, ou seja, dinheiro que gera dinheiro. Certamente, esse novo paradigma econômico assentaria enormemente os pensadores da economia clássica, pelo fato da mercadoria não mais existir, sendo nós a própria mercadoria.

O caminho do rentismo modifica de sobremaneira o comportamento econômico e a percepção da sociedade frente ao mundo financeiro. Enfim, a busca por investimentos que ofereçam maior rentabilidade, sem a necessidade de produção e trabalho embutido tornou-se uma espécie de supermercado, na qual pode-se escolher uma série de ativos financeiros que melhor proporcione um bom rendimento, dentre eles destacam-se: derivativos, ações, títulos emitidos por bancos e governos, letras financeiras, CDBs, incluindo até mesmo moedas virtuais (criptomoedas), além de títulos creditícios que pagam juros futuros dos setores imobiliários e de agronegócios. Muitos destes ativos já foram responsáveis por grandes crises mundiais - a exemplo: a crise dos subprimes em 2008, que levou a bancarrota o sistema de credito imobiliário nos EUA.

A configuração desse capitalismo financeiro, da qual todos nós, ora somos investidores, credores e acionistas de empresas, ou ora estamos do lado dos devedores (tomadores de empréstimos) afeta diretamente o setor produtivo, onde a criação de valor abre espaço para aquilo que Mazzucato denomina extração de valor. A extração de valor impacta seriamente a produção de riqueza de um país, provoca consequências direta na distribuição e concentração de renda. Pois, a extração de valor impede que a riqueza possa circular, já que não há produção e as relações de trabalho ficam enfraquecidas. Isso é o aprofundamento do neoliberalismo, em que até mesmo o Estado passa a ser um devedor. Bem, o enfraquecimento estatal, perante as privatizações e amplamente desregulamentado vê-se endividado para realizar suas ações e oferecer serviços públicos à população, nesse ponto sua dívida pública cresce de maneira estratosférica.

Grande parte dos Estados-nações tem recorrido à empréstimos (com juros altíssimos) em bancos nacionais ou internacionais no intuito de equilibrar suas contas, ou desenvolver políticas públicas. Sendo está última bastante rara. Num mundo em crise, a desregulamentação do setor financeiro promoveu todo tipo de aberração econômica, colocando em cheque a estabilidade social, política e econômica de muitos países. Como disse a própria Mazzucato, para os governos a regulamentação é vital, sendo ela ligada ao estado de bem-estar social e talvez uma forma de se proteger das grandes crises. Mas, o mundo neoliberal não enxerga desse modo, pois o neoliberalismo acredita que a regulamentação impede o desenvolvimento produtivo, por causa de um Estado interventor e não deixando o mercado agir livremente. Todavia, sabemos que a desregulamentação da economia abriu precedentes para neoliberalismo e a globalização que resultou em crises homéricas; numa série fantástica de destruição dos direitos dos trabalhadores, aumentando ainda mais o fosso da desigualdade social e da distribuição de renda.

A desregulamentação econômica e financeira de fato serviu para a derrocada das economias industriais e agravamento da crise capitalista. Vemos agora um enorme contingente de desempregados, subempregados e pseudo-empreendedores vítimas dos ideais libertários e neoliberais de Hayek, um difusor inconsequente da desregulamentação dos mercados financeiros.

Países, como Brasil também flertou - mesmo que timidamente - com esses ideários hayekianos. E então, implantado no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e mitigado pelo Governo Lula, o tripé macroeconômico, cuja sustentação impunha-se nas seguintes medidas: câmbio flutuante, austeridade fiscal e metas de inflação. O tripé macroeconômico na verdade é uma daquelas soluções “sui generis”, tipicamente nacional – uma espécie de jabuticaba, inerentemente brasileira. Esse modelo neoliberal “franksteiniano” construído especialmente para nossa nação já nascerá com os pés tortos, sua adoção lá no governo FHC não seria uma boa coisa. Pois, o tripé macroeconômico só gerou mais desigualdade social e impediu o crescimento econômico do país. Especificamente, o pé da austeridade fiscal tornou-se uma grande paranoia política, a qualquer custo tinha-se que atingir o superávit primário. Era o mantra do governo na época.  

A austeridade fiscal foi, ou melhor, ainda é um ponto vital do tripé macroeconômico, que ajusta-se ao desenho neoliberal. No entanto, extremamente danoso para o desenvolvimento social do país. O propósito negativo da austeridade fiscal - muitas vezes insano - está em debelar dívida pública e daí cortar gastos. Porém, os cortes geralmente são feitos em áreas essenciais à sociedade, no caso: educação, saúde, infraestrutura e pesquisa. Como diz a própria Mazzucato: “Esses valores relacionados à dívida pública saem do nada, não há um rigor cientifico para estabelece-las e sim colocadas nos relatórios por razões quase mágicas”. A adoção de uma política de austeridade fiscal é quase sempre ineficiente e nociva para economia, que culmina numa profunda recessão, devido ao enfraquecimento dos setores produtivos.

A ideia da austeridade fiscal caminha em uma direção totalmente contrária aos ideais keynesianos, em que o governo deveria ser o indutor da economia e assim investir em estruturas passíveis de geração de empregos, produção de bens, criação de novas tecnologias e oferta de serviços básicos. Seria, conforme Mazzucato, o Estado criando valor e permitindo que as demandas pudessem ser devidamente supridas.

Os economistas libertários, como Hayek enxergam a produtividade estatal apenas como gastos, por isso defendem a ideia da austeridade fiscal para reduzi-las ao máximo. Uma visão um tanto equivocada por parte deles. Sabemos o tempo todo que o governo é quem coloca dinheiro na economia, simplesmente para fazer a roda do desenvolvimento girar mais rápido e se o governo corta gastos essenciais teremos como consequência o desaquecimento da produção e um grave quadro de recessão.

Todavia, impera um discurso típico dos economistas neoliberais e libertários, como Hayek, de que as crises e as mazelas devem-se aos interesses públicos e não privados. Nas palavras de Mazzucato esse discurso neoliberal não tem efeito, sendo que os interesses privados é que buscam cooptar os agentes políticos, em sua maioria por meio antiético ou mesmo ilícitos. Enfim, esse discurso que podemos denominar ultraliberal - no Brasil defendido pelo ministro da economia – prevê privatizações, cortes de gastos em setores vitais (educação e saúde), concessão de rodovias, portos e aeroportos – pois – alega-se ineficiência e incapacidade por parte dos governos em lidar com a coisa pública. O “modus operandi” está em privatizar e financeirizar até mesmo serviços estratégicos como a água, gás e o setor de energia elétrica. Toda infraestrutura do país nas mãos do capital privado. A política neoliberal faz-se latente no mundo e da mesma forma, já está em pleno vigor no Brasil.

Enquanto isso, o capitalismo financeiro favorece e muito o rentismo - que é a obtenção da renda - seja por isenção de impostos, recebimentos de juros em aplicação de títulos sem a incidência de impostos, investimento em debêntures de empresas públicas e privadas de alta rentabilidade e isentas de impostos – a mais pura extração de valor. O rentismo, da forma que se apresenta impede que haja uma distribuição de riqueza mais justa. De acordo com Mazzucato, o rentismo não cria qualquer valor por não pertencer ao comum, e ficar apenas no espectro do indivíduo. Isso explica o porquê dos rentistas não estarem de acordo com as regras de regulamentação e serem totalmente contrários a qualquer taxação sobre os investimentos, dividendos, ou mesmo alterações na cobrança de impostos visando o aumento das alíquotas. Por isso, o discurso neoliberal volta-se ferozmente contra o serviço público.

Se por um lado, o lucro obtido pelas empresas dentro daquilo que chamamos processo produtivo, da qual existe coletividade e em parte existe algum apoio de políticas governamentais voltadas para a competitividade, de certa forma dizemos que sim, há criação de valor. Agora, se os mercados moldam-se apenas num intuito especulativo, ou seja, transacionar a compra e venda de ativos e com isso obter ganhos, ou mesmo explorar o mercado imobiliário e dele retirar renda, sem qualquer taxação de impostos, então estaremos apenas extraindo valor. Para que fique bem claro, seja na criação de valor ou na extração de valor, ambos dependem do dinheiro público para proporcionar o desenvolvimento e a geração de riqueza.

Somente o coletivo tem a plena capacidade de efetivar a criação de riqueza, sendo que ele (o coletivo) possui o tão abnegado “general intellect” (o saber difuso marxista) capaz de inovar. Todas essas questões, pontuais ou não, faz-se mister para compreendermos a dinâmica econômica relacionadas ao mundo atual em que vivemos. Talvez isso possa ser um primeiro passo em direção a uma economia deveras sustentável, onde governo, setor produtivo e a sociedade sejam capazes de repensar as agruras deste capitalismo moderno sufocante e trazer à baila soluções reais que condizem melhor com uma democracia verdadeiramente participativa e criadora de valor.                    

A especulação no capitalismo financeiro é a maneira mais fácil de se obter renda, a mais pura extração de valor. Porém, uma ação de risco, cuja desregulamentação econômica torna mais evidente. Com o capitalismo financeiro, diversos tipos de ativos financeiros ficaram mais populares, tais como os derivativos, ou seja, contratos futuros que são produtos derivados dos ativos originais, uma espécie de seguro. Os derivativos agora negociados livremente muitas vezes embutem altos riscos, sendo produto da desregulamentação. Além disso, as opções de compra (calls) e opções de venda (puts) complementam esse rol de produtos lançados pelo mercado financeiro, como se fossem mercadorias tangíveis feito um sapato, uma roupa, um carro ou gêneros alimentícios.

Contudo, não passam de meros papéis, ou melhor, números em uma tela que dá aos seus detentores o direito de comprar ou vender dinheiro num prazo futuro. Na maioria das vezes esses ativos financeiros não demonstram alta liquidez e possuem alta probabilidade de risco. Mais uma vez, basta lembrarmos da crise dos subprimes de 2008, que colocou abaixo todo setor imobiliário nos EUA por causa da emissão de papéis que financiavam a venda de imóveis para pessoas com alto risco de crédito.

O processo de desregulamentação, citado no livro da Mazzucato, em grande parte caracteriza-se pelo processo de financeirização, que atualmente supera a economia real, ou seja, o setor produtivo; sendo a essência do capitalismo moderno.

A evolução do sistema financeiro, de acordo com Mazzucato, abriu precedentes para a profissionalização da gestão em investimentos, com o crescimento e aparecimento de variados agentes no setor; como corretoras, gestores e casas de análises e recomendações de investimentos imbuídos em atender os apetites daqueles que querem ganhar cada vez mais. Os planos de previdência privados, dentro das políticas neoliberais substituem a antiga seguridade social do regime coletivo. Agora, cada indivíduo é o responsável por sua aposentadoria, já que o Estado não fornece mais o instituto do bem-estar social e por esse caminho vai a saúde pública, na qual os planos de saúde individuais privados consomem boa parte do rendimento daqueles que podem pagar.

Enquanto isso, os grandes fundos de investimentos e fundos de pensões obtém altos lucros para gerenciar serviços que deveriam ser públicos e oferecidos a toda população, dado que são pagos através dos impostos. A realidade está posta nua e crua para que todos possam ver, o neoliberalismo nos colocam numa condição de empobrecimento, fazendo acreditar que somos livres e capazes de vencer sem a presença de um Estado e políticas públicas. A liberdade hayekiana mais uma vez nos joga contra o muro da ilusão do mundo sem regras.    

O tempo do mercado financeiro não se ajusta ao tempo real, ao tempo histórico e seus movimentos antecipam o futuro. Sendo mais claro, o mercado financeiro é atinente aos fatos momentâneos. Talvez, nele caiba o tempo e espaço relativo de Einstein e a sua profusão de energia cósmica. Pois, os fatos precificam o mercado no antes, no agora e no depois. Por exemplo: tanto que a pesquisa e os rumores de sucesso das vacinas para Covid-19, já trouxe expectativas bastante positiva para à alta nas ações das empresas farmacêuticas e grandes laboratórios. Tal Fato, mostra o quanto o mercado financeiro é sensível à linguagem e aos signos, sendo que seu humor, um tanto polar, depende da comunicação e das notícias. 

Assim podemos inferir que o mercado financeiro não está conectado a um mundo físico, real e muito menos importa-se com as relações de trabalho, de produção e circulação de mercadorias. Sua real preocupação se dá nos fatos, nas expectativas e sobretudo numa linguagem simbólica, que se completa em transações econômicas puramente virtuais – beirando ao fictício. Daí sua aproximação com o mundo relativístico do espaço e tempo de Einstein.  Para complementar esse raciocínio, Mazzucato diz que as empresas do mundo real que estão fora do mundo financeiro para conseguir retornos que sejam satisfatórios serão obrigadas a financeirizar suas atividades de produção e distribuição, e suma, aderir à globalização e ao neoliberalismo. Isso seria sair do mundo da economia real para aventurar-se num capitalismo chamado moderno, ou biocapitalismo de Antônio Negri, já discutido anteriormente neste livro.

Podemos observar que não há saída, o capitalismo financeiro moldou toda estrutura social e política. A força está nas mãos das grandes corporações e seus lucros vão em grande parte vão para as mãos dos acionistas. O Estado que antes detinha o poder de regular essas grandes corporações e evitar os monopólios, agora estão subjugadas a elas, são devedores. Até mesmo serviços essenciais foram privatizados e entregues para essas corporações, que quase não pagam impostos e monopolizam o mercado sem deixar abertura para concorrência, e impossibilitando o Estado de formular assistência básica à população. Seria esse o fim do Estado Keynesiano. 

A criação de riqueza deixou de ser um processo coletivo, prevalece apenas a extração de valor típica do setor financeiro. Para Mazzucato a criação de valor está em transferir a riqueza produzida do acionista para aqueles que produzem – os trabalhadores. Isso é criação de valor, por que reconhece o coletivo. Ser trabalhador é participar da coletividade.

O cerne da desigualdade paira justamente nos excessos que o mundo financeirizado provoca, por não criar valor e sim apenas extrair valor dos agentes produtivos. Por fim, a financeirização apresenta-se como um processo proveniente da falta de regulamentação do mercado e de sua grande liberdade (com tanto queria Hayek) e o preço que pagamos por isso, está numa sociedade completamente deteriorada, empobrecida e separada por um enorme fosso social. Não precisamos apontar o dedo e dizer claramente que as consequências disso tudo recai sobre os ombros largos do capitalismo moderno, esse mesmo que devora tudo.

O capitalismo financeiro, não abraça somente, o mercado de ativos e títulos, em seus poros tem entranhado fortemente as novas tecnologias e sem qualquer suor extrai-se o valor das inovações. O “general intellect” de Marx (esse saber difuso da sociedade) é o detentor legitimo das inovações, como bem disse Mazzucato: a inovação vem do coletivo. Grande parte dessas inovações exigem um longo prazo e contêm riscos, o investimento estatal aparece quase exclusivamente como uma opção. O governo é fundamental para o avanço tecnológico nas palavras da autora. Em geral, o processo de inovação parte das instituições públicas e universidades, ou é financiado com dinheiro público destinado às empresas privadas. Esses financiamentos estatais, que são transferidos às empresas privadas em parte deveriam beneficiar a população, por exemplo a indústria farmacêutica.

No entanto, a questão é um pouco mais complicada, por que essas empresas criam patentes desta inovação (no caso de um medicamento ou vacina, digamos para Covid-19) então ficando sob o domínio delas, ou seja, a empresa apropria-se desse conhecimento e detêm poder sobre ele, impedindo que outros tenham acesso; isso é – extrair valor e não criar valor. A criação de uma inovação por parte do coletivo, em que impera o “general intellect” equivale ao socialismo cognitivo, há um compartilhamento de conhecimento e trocas de experiências, na qual o saber a princípio pertenceria ao âmbito social e coletivo. Um comum. Mas não é isto que ocorre, as forças do mercado apoderam-se deste conhecimento e o transformam em algo patenteável, quiçá num produto vendável. Então, a medida que tal inovação é apropriada pelo mercado e diluída num produto que gera mais-valor e passível de ser trocada, o socialismo cognitivo deixa existir e impera a voracidade do capital, nesse momento o homem torna-se mercadoria. O capitalismo financeiro, em sua fome voraz e implacável deglutiu não somente o dinheiro, mas também as tecnologias de informação e as redes, conseguiu colocar as inovações do coletivo sob seu domínio, tanto que as redes sociais viraram verdadeiros monopólios que dominam o mercado. A maioria dessas redes sociais já exercem um grande poder sobre os nossos dados e informações. Nas palavras de Mazzucato, o poder dessas gigantes digitais tem impacto direto na criação, como na extração de valor, e ainda complementa a autora, que o sucesso dessas empresas se dá graças aos investimentos públicos, de alto risco. A grande maioria dos trabalhadores dessas empresas são em sua maioria precarizados e não tem qualquer salvaguarda das leis trabalhistas, denominados de trabalhadores “uberizados” (sem vínculo empregatício).

Colocamos aqui uma reflexão importante sobre está relação público e privado. Os riscos da inovação recai sobre o coletivo e o Estado, mas os lucros e a renda cabem ao setor privado. É fundamental alterarmos essa lógica perversa, que em nada contribui para a sociedade. Enfim, é o trabalho do coletivo que agrega valor – pois - o tempo de estudo de uma pessoa somado ao trabalho de pesquisa do outro, que em colaboração com uma outra vai permitir o nascimento de uma inovação, e posteriormente beneficiará tantas outras. Isso é o “general intellect” que Marx tanto falou em suas obras.

Numa transcrição literal da frase de Mazzucato, percebe-se sua crença na força do coletivo ao dizer que “o trabalho realizado pelo coletivo é que permite o desenvolvimento junto às tecnologias”. Portanto, cabe ao Estado reconhecer que a inovação vem do comum - do coletivo - sendo seu papel financiar novas tecnologias. O coletivo só consegue ganhar visibilidade dentro do espectro da democracia participativa.

  


Natureza

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