Identitarismo e preconceitos:
Há um bom tempo venho indicando em meus escritos como o identitarismo é pernicioso à sociedade. Bem, o identitário quer tomar para si o título de oprimido e dele utiliza-se para se vitimizar. Então, todo e qualquer fato que possa implicar num desvio contra sua pessoa, daí se transforma numa gritaria sem fim com frases num tom de discurso inflamado de que tudo é machismo, homofobia, racismo, misoginia e por aí vai. O identitário quer de toda forma reinvidicar a carteirinha de vítima e se apoderar de um lugar de fala, em que só ele pode subir ao palanque e discursar. Sim, nada mais justo e assim reconhecemos. No entanto, o palco não é um lugar exclusivo dele - pois - há os outros a qual tem a competência e o direito em discursar em favor de uma causa e diante disso enriquecer o debate. De forma alguma, somos contra a identidade e jamais deixaremos de lutar pelas causas das minorias. O ódio e o preconceito em nenhuma hipóstese devem ser vistos e aceitados como elementos normais da sociedade. Cabe a cada ser humano combaté-los. Por outro lado, se se criam mecanismos estruturais para apontar toda sociedade como sendo racista, misógina, homofóbica, ou melhor preconceituosa, acabamos caindo no identitarismo. Tudo isso provoca categoricamente o enfraquecimento dos movimentos de luta por não permitir um dialógo amplo nos espaços públicos. A identidade fica enredada numa teia voltada internamente para seu próprio centro, incapaz de lastrear-se às periférias, assim nasce o identitarismo. Se a busca por uma identidade está no espírito do pertencimento, no fazer de uma coletividade, no ser igual à, resumindo: eu pertenço, por que pareço com e tenho minhas raízes, sou descendente. Pois isso explica muito bem a identidade, portanto aceito e compreendo o outro. Ao contrário, no identitarismo, o identitário apropria-se de uma identidade que muitas vezes só lhe é oportuna, e possa lhe trazer algum benefício - não lhe interessando o outro - ou até mesmo os iguais. Utiliza-se de suas características apenas ao seu belprazer, não importa a ele os movimentos e as lutas sociais daqueles que seriam os iguais. Erroneamente, o significado que dão à palavra identitarismo em linhas gerais como algo que refere-se a
movimentos sociais e políticos que se organizam em torno de identidades
específicas, como gênero, raça, etnia, orientação sexual, entre outras. O
objetivo principal é a afirmação dessas identidades, a luta contra a opressão e
a busca por direitos e reconhecimento para os grupos marginalizados. Porém, já sabemos que não é bem isso, como ficou claro nos paragráfos anteriores. Trata-se de um conceito bem mais complexo, ao passo que exige análises sociológicas e históricas aprofudadas. É a partir dessas argumentações que introduziremos a relação da mulher com o identitarismo na sociedade atual. Se voltarmos na parte I, publicado no texto anterior, ficou claro os atuais movimentos que submetem a mulher a uma condição de ser inferior e perigosa por parte dos "Incels" e "Red Pills". O total ódio, preconceito e desapreço pela figura feminina. Uma certa aversão, diriamos. Nessa segunda parte, a relação da mulher com o identitarismo na
sociedade contemporânea é complexa e multifacetada, permeada por debates
acalorados e diferentes perspectivas dentro do próprio movimento feminista e em
diálogo com outras lutas sociais. Para compreender essa relação, é crucial
analisar o que se entende por identitarismo e como ele se manifesta no contexto
da experiência feminina. O nosso discurso se enriquece somente quando temos a capacidade de abstrairmos os conceitos e os distinguirmos plenamente. Dizemos isto pelo fato das políticas de identidade serem necessárias ao trazer direitos sociais e ao mesmo tempo ser fundamental para
dar voz e visibilidade às suas experiências de opressão, que muitas vezes são
negligenciadas por abordagens universalistas que não consideram as
especificidades de gênero. . O feminismo, em sua essência, é uma política de
identidade, pois se organiza em torno da identidade de gênero para desafiar o
patriarcado e lutar pela igualdade. No entanto, dentro do feminismo, diferentes
perspectivas surgem em relação as políticas de identidade:
- Feminismo
da diferença: enfatiza as diferenças entre homens e mulheres, buscando valorizar as
qualidades e experiências consideradas tipicamente femininas. Essa
perspectiva pode ser vista como uma forma de identitarismo, focada na
afirmação de uma identidade de gênero específica.
- Feminismo
interseccional: reconhece que a experiência de ser mulher é atravessada por outras
categorias de identidade, como raça, classe social, orientação sexual, deficiência,
etc. A interseccionalidade argumenta que as opressões não atuam de forma
isolada, mas se interconectam, criando experiências únicas de
discriminação. Essa abordagem critica um identitarismo que se foque apenas
no gênero, sem considerar outras dimensões da identidade.
Tais políticas de identidade de certa maneira tem trazidos grandes impactos para as mulheres em nossa atual sociedades. Mudanças que siginificativas em relação a:
- visibilidade
e representação: tem contribuído para aumentar a visibilidade das
experiências de mulheres marginalizadas, como mulheres negras, indígenas,
LGBTQIA+ e com deficiência, que historicamente foram excluídas das
narrativas feministas dominantes.
- empoderamento
e organização: ao
se identificarem com outras mulheres que compartilham experiências
semelhantes, as mulheres encontram força e apoio para se organizar
politicamente e lutar por seus direitos.
- desafios
à norma: questionamentos quanto as normas sociais e culturais que historicamente
oprimiram as mulheres, desafiando estereótipos de gênero e reivindicando a
diversidade de experiências femininas.
- debates
e tensões: a relação da mulher com próprio o identitarismo também gera debates e tensões dentro
do movimento feminista, como as discussões sobre a inclusão de mulheres
trans e as críticas ao foco excessivo em identidades em detrimento de
lutas mais amplas contra o sistema capitalista e patriarcal.
Observa-se que há por parte do próprio movimento feminista uma crítica ao identitarismo, a qual algumas
correntes dentro e fora do feminismo argumentam que ele pode levar à fragmentação da luta social, ao
essencialismo (a ideia de que existe uma essência fixa e universal para
cada identidade) e ao vitimismo. Críticos argumentam que o foco excessivo
na identidade pode obscurecer as estruturas de poder mais amplas e
dificultar a construção de solidariedade entre diferentes grupos
oprimidos. Se, por um lado, a afirmação da identidade de
gênero e a organização em torno dela foram e continuam sendo cruciais para a
luta feminista, por outro, a necessidade de considerar a interseccionalidade e
evitar o essencialismo e a fragmentação são desafios importantes. O debate
sobre o papel das políticas de identidade no feminismo e em outras lutas sociais continua
em aberto, moldando as estratégias e os rumos dos movimentos em busca de uma
sociedade mais justa e igualitária para todas as mulheres.
Ao delinearmos esse caminho tortuoso a respeito do identirarismo e os seus impactos no movimento feminista e de luta das mulheres, precismos transpor as barreiras do preconceito e da discriminação. Quem nos aponta uma direção, sob um olhar histórico e social, a respeito do preconceito contra a muher é a filosófa Simone de Beauvoir. Em sua obra "O segundo sexo" (1949) a autora oferece
uma análise profunda e influente sobre a construção social e histórica do preconceito contra as mulheres. Para Beauvoir, a
mulher não nasce mulher, torna-se mulher. Essa frase icônica resume sua tese de
que a feminilidade não é uma essência biológica, mas sim um constructo cultural
imposto às mulheres ao longo da história. Com isso a autora apresenta as seguintes perspectivas decritas na obra:
- O
"Outro": Beauvoir argumenta que, historicamente, a
mulher foi definida como o "Outro" em relação ao homem, que é
considerado o sujeito, o padrão e o universal. Essa dicotomia fundamental
estabelece uma hierarquia onde o masculino representa o positivo e o
feminino, a negação, o dependente. Essa alteridade imposta impede que as
mulheres se constituam como sujeitos autônomos.
- Socialização
e Educação:
Desde a infância, as meninas são socializadas para internalizar papéis e
expectativas que as confinam à esfera doméstica, à passividade e à
submissão. A educação, muitas vezes diferenciada, reforça essa construção,
limitando suas ambições e oportunidades no mundo público.
- Mitos
e Estereótipos: A
sociedade perpetua mitos e estereótipos sobre a natureza feminina – como a
fragilidade, a emotividade excessiva e a vocação para a maternidade – que
justificam a sua subordinação e as impedem de alcançar a plenitude de seu
ser. Esses mitos são internalizados tanto por homens quanto por mulheres,
perpetuando o ciclo do preconceito.
- A
Construção da Feminilidade: Beauvoir detalha como diversas áreas do
conhecimento, como a biologia, a psicanálise e a história, contribuíram
para a construção da feminilidade como algo inerente e limitador,
ignorando a influência crucial dos fatores sociais e culturais.
A visão de Simone de Beauvoir sobre o mundo feminino intelirga-se por completo aos tempos contemporâneos, em que a força do capital espraia-se nas margens do poder financeiro dominado pelas forças masculinas. Num tom irônico, porém verdadeiro: o capitalismo é macho, por isso detêm o poder. Dessa forma, podemos antever que o pensamento Simone de Beauvoir já preconizava um certo preconceito em relação a mulher no mundo neoliberal de agora. Embora as ideias da filosófa tenham sido
fundamentais para impulsionar o movimento feminista e promover avanços
significativos na luta pela igualdade, o preconceito contra as mulheres
persiste e se manifesta de maneiras complexas nesse contexto do neoliberal, observados nos seguintes fatores:
- a exacerbação da competição e da individualização: o neoliberalismo, com sua
ênfase na competição acirrada, no individualismo e na meritocracia, pode
exacerbar as desigualdades de gênero. As mulheres, frequentemente
sobrecarregadas com o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado,
enfrentam maiores dificuldades para competir em um mercado de trabalho
desigual e para ascender profissionalmente.
- a mercantilização do corpo feminino: A cultura neoliberal frequentemente
mercantiliza o corpo feminino, utilizando-o como objeto de consumo e
reforçando padrões de beleza irreais e opressivos. Essa objetificação
contribui para a desvalorização da mulher como indivíduo e para a
perpetuação de estereótipos sexistas.
- a precariedade do trabalho e a desigualdade salarial: No mercado de trabalho
flexível e desregulamentado característico do neoliberalismo, as mulheres
tendem a ocupar posições mais precárias, com menores salários e menos
benefícios. A persistente desigualdade salarial entre homens e mulheres
reflete a desvalorização do trabalho feminino e a manutenção de
preconceitos arraigados.
- o desmonte de políticas públicas: As políticas de austeridade e o desmonte de
serviços públicos promovidos pelo neoliberalismo podem impactar
desproporcionalmente as mulheres, que dependem mais desses serviços para o
cuidado de crianças, idosos e pessoas com deficiência. A redução de
creches, de serviços de saúde e de assistência social aumenta a carga de
trabalho não remunerado sobre as mulheres.
- a violência de gênero em um contexto de desigualdade: A violência contra as
mulheres, em suas diversas formas, é um reflexo extremo do preconceito de
gênero. Em um contexto de desigualdade econômica e social exacerbada pelo
neoliberalismo, as mulheres em situação de vulnerabilidade podem enfrentar
ainda maiores obstáculos para romper o ciclo da violência e buscar apoio.
Diante de tais fatores, temos grandes desafios para a construção de uma identidade verdadeiramente feminina, e portanto se falar numa interseccionalidade que busque incluir a mulher em todas suas matizes. Então, torna-se crucial reconhecer que o preconceito contra as
mulheres se manifesta de maneiras diversas e intersecionais, sendo moldado por
fatores como raça, classe social, orientação sexual, identidade de gênero e
deficiência. O neoliberalismo, ao acentuar as desigualdades estruturais, também
pode intensificar as formas específicas de discriminação enfrentadas por
diferentes grupos de mulheres. Em suma, a análise de Simone de Beauvoir continua
sendo fundamental para compreendermos as raízes históricas e sociais do
preconceito contra as mulheres. No entanto, é essencial analisar como esse
preconceito se adapta e se manifesta no contexto do mundo neoliberal atual, com
suas próprias dinâmicas de poder e desigualdade. A luta pela igualdade de
gênero no século XXI exige uma compreensão dessas interconexões e a
implementação de políticas que abordem tanto as heranças históricas quanto os
desafios contemporâneos. Um caminho totalmente inverso ao identitarismo.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo
sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015. v. 1: Fatos e mitos.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo
sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015. v. 2: A Experiência Vivida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário