sexta-feira, 30 de maio de 2025

Sobre as mulheres: uma visão contemporânea - Parte III

 

O Papel da Mulher no Mundo do Trabalho: Capitalismo e Feminismo em Diálogo.

Nesta terceira e última parte do texto vamos percorrer o caminho da mulher em relação ao mundo trabalho. Suas dificuldades, lutas e tensões diante da exploração capitalista, enquanto mão de obra barata que mostra a sua mais completa desvalorização. Assim dizemos que a inserção da mulher no mundo do trabalho é um processo histórico complexo, intrinsecamente ligado à evolução da sociedade capitalista e às lutas do movimento feminista. Longe de ser uma história linear de progresso, essa relação é marcada por avanços, retrocessos e tensões persistentes.

A Mulher e o Capitalismo: Uma Relação de Exploração e Necessidade

Desde as primeiras fases do capitalismo, a força de trabalho feminina foi fundamental, embora frequentemente invisibilizada e desvalorizada.

  • Mão de obra barata: O sistema capitalista encontrou na mulher uma fonte de mão de obra mais barata, explorando a divisão sexual do trabalho que historicamente relegava as mulheres à esfera doméstica. Setores como a indústria têxtil, no início da Revolução Industrial, dependiam fortemente do trabalho feminino, pago com salários inferiores aos dos homens.
  • Dupla jornada: A entrada no mercado de trabalho assalariado não significou o abandono das responsabilidades domésticas e de cuidado. As mulheres passaram a acumular a chamada "dupla jornada", trabalhando fora e dentro de casa, sem que essa segunda jornada fosse devidamente reconhecida ou remunerada.
  • Flexibilização e precarização: No contexto do neoliberalismo, a busca por flexibilidade e a desregulamentação do mercado de trabalho muitas vezes impactam desproporcionalmente as mulheres. Elas são mais propensas a ocupar empregos de tempo parcial, temporários e com menores salários e benefícios, o que as torna mais vulneráveis à precarização.
  • Mercantilização do corpo e do cuidado: O capitalismo também se apropria do corpo feminino através da publicidade e da indústria da beleza, reforçando padrões estéticos opressivos. Além disso, o trabalho de cuidado, essencial para a reprodução da força de trabalho, é frequentemente desvalorizado e feminilizado.

O Feminismo como Agente de Transformação e Crítica

O movimento feminista, em suas diversas ondas e vertentes, desempenhou e continua desempenhando um papel crucial na luta pela igualdade no mundo do trabalho.

  • Denúncia da exploração: O feminismo tem historicamente denunciado a exploração da mulher no mercado de trabalho, expondo as desigualdades salariais, a segregação ocupacional e as condições precárias enfrentadas pelas trabalhadoras.
  • Reivindicação por direitos: As feministas lutaram e continuam lutando por igualdade salarial, licença-maternidade e paternidade, creches no local de trabalho, combate ao assédio sexual e moral, e por políticas públicas que conciliem trabalho e vida pessoal.
  • Questionamento da divisão sexual do trabalho: O feminismo desafia a tradicional divisão sexual do trabalho, que atribui desproporcionalmente às mulheres as responsabilidades domésticas e de cuidado, limitando suas oportunidades no mercado de trabalho.
  • Crítica ao capitalismo patriarcal: Uma parcela significativa do feminismo critica a intrínseca ligação entre o capitalismo e o patriarcado, argumentando que o sistema econômico se beneficia da opressão de gênero para manter a exploração e a desigualdade. Para essas correntes, a emancipação da mulher no trabalho passa necessariamente por uma transformação mais ampla das estruturas sociais e econômicas.

  • Interseccionalidade: O feminismo contemporâneo reconhece que a experiência das mulheres no mundo do trabalho é atravessada por outras categorias de opressão, como raça, classe social, orientação sexual e deficiência. A luta por igualdade salarial para uma mulher negra, por exemplo, enfrenta desafios distintos daqueles de uma mulher branca de classe média.

Tensões e desafios atuais:

A relação entre as mulheres no mundo do trabalho, o capitalismo e o feminismo continua sendo dinâmica e marcada por tensões:

  • Feminismo liberal e a "ascensão" individual: Uma vertente do feminismo, por vezes alinhada a ideais meritocráticos do capitalismo, foca na ascensão individual das mulheres a cargos de poder, sem necessariamente questionar as estruturas de desigualdade mais amplas.
  • Apropriação do discurso feminista pelo mercado: O capitalismo, em algumas instâncias, apropria-se do discurso feminista para fins de marketing ou para justificar a exploração de novas formas de trabalho feminino, sem promover mudanças estruturais significativas.
  • A persistência da desigualdade: Apesar dos avanços, a desigualdade salarial de gênero, a sub-representação em cargos de liderança e a sobrecarga de trabalho ainda são realidades para muitas mulheres.
  • O retrocesso conservador: O avanço de ideologias conservadoras e neoliberais em muitos países representa uma ameaça aos direitos trabalhistas e reprodutivos das mulheres, dificultando a conquista da igualdade plena no mundo do trabalho.

Em suma, o papel da mulher no mundo do trabalho é um campo de batalha constante. O capitalismo, com sua lógica de exploração e acumulação, frequentemente se beneficia da desvalorização do trabalho feminino e da manutenção de desigualdades. O feminismo, em suas diversas formas, emerge como uma força de resistência e transformação, buscando desmantelar as estruturas patriarcais e capitalistas que perpetuam a opressão e lutar por um mundo do trabalho mais justo e igualitário para todas as mulheres. A complexidade dessa relação exige uma análise crítica constante e a construção de estratégias que articulem a luta por direitos trabalhistas com a luta por uma sociedade livre de todas as formas de discriminação.

A Contraposição da Mulher no Mundo Capitalista e na Sociedade Socialista

A posição da mulher no mundo do trabalho e na sociedade em geral apresenta contrastes significativos entre os sistemas capitalista e socialista, embora a realidade histórica dos países socialistas nem sempre tenha correspondido plenamente aos ideais teóricos.

No Mundo Capitalista:

  • Exploração da Mão de Obra: Como discutido anteriormente, o capitalismo frequentemente explora a mão de obra feminina, pagando salários inferiores e confinando as mulheres a setores com menor remuneração. A dupla jornada (trabalho produtivo e reprodutivo) é uma realidade para muitas, com o trabalho doméstico e de cuidado sendo majoritariamente não remunerado e desvalorizado.
  • Mercantilização e Objetificação: O corpo e a sexualidade da mulher são frequentemente mercantilizados para fins de lucro, através da publicidade, da indústria da beleza e do entretenimento, reforçando padrões de beleza irreais e contribuindo para a objetificação.
  • Desigualdade Estrutural: As desigualdades de gênero são frequentemente reproduzidas pelas estruturas capitalistas, com barreiras para a ascensão profissional, menor acesso a cargos de liderança e persistente discriminação no ambiente de trabalho.
  • Feminismo como Luta por Direitos Dentro do Sistema: O feminismo, em grande parte, busca a igualdade de direitos e oportunidades dentro da estrutura capitalista, lutando por igualdade salarial, melhores condições de trabalho, licença-maternidade e combate à discriminação. No entanto, algumas vertentes criticam a própria estrutura capitalista como intrinsecamente ligada à opressão de gênero.

Na Sociedade Socialista (em teoria e com nuances históricas):

  • Ênfase na Igualdade e na Integração ao Trabalho: A teoria socialista geralmente preconiza a plena integração da mulher ao mundo do trabalho em condições de igualdade com os homens, com igualdade salarial e oportunidades de desenvolvimento profissional. O trabalho é visto como um direito e um dever de todos os cidadãos, independentemente do gênero.
  • Socialização do Trabalho Doméstico e de Cuidado: Em muitos modelos socialistas, há uma ênfase na socialização do trabalho doméstico e de cuidado através de creches públicas, refeitórios coletivos e outros serviços sociais, visando aliviar a dupla jornada das mulheres e permitir sua plena participação na vida pública e profissional.
  • Desconstrução da Divisão Sexual do Trabalho: A ideologia socialista busca desconstruir a tradicional divisão sexual do trabalho, incentivando a participação das mulheres em todas as áreas da economia e da sociedade, incluindo aquelas historicamente dominadas por homens.
  • Feminismo como Parte da Luta de Classes: No contexto socialista, a luta pela emancipação da mulher é frequentemente vista como parte integrante da luta de classes, com a crença de que a plena igualdade de gênero só pode ser alcançada com a superação do sistema capitalista e a construção de uma sociedade sem classes.
  • Realidades Históricas Complexas: É crucial notar que a implementação desses ideais nos países socialistas do século XX foi complexa e nem sempre atingiu a plena igualdade de gênero. Problemas como a persistência de estereótipos de gênero, a sub-representação em certos setores e a manutenção de algumas formas de desigualdade existiram. Além disso, o debate feminista dentro dos movimentos socialistas nem sempre foi homogêneo.

Contraposição e Interseções:

A contraposição fundamental reside na visão sobre a raiz da opressão de gênero e a solução para ela. Enquanto o capitalismo, em sua essência, pode se beneficiar da desigualdade (mão de obra barata, exploração do consumo), o socialismo, em teoria, busca eliminar todas as formas de opressão, incluindo a de gênero, através da transformação das estruturas econômicas e sociais.

No entanto, existem interseções e nuances importantes:

  • Feminismo Socialista: Uma corrente do feminismo, o feminismo socialista, busca integrar a análise de gênero com a crítica marxista ao capitalismo, argumentando que a opressão das mulheres está intrinsecamente ligada ao sistema de classes e que a emancipação feminina requer uma transformação socialista da sociedade.
  • Apropriação Capitalista do Discurso Feminista: Como mencionado, o capitalismo pode se apropriar de demandas feministas (como a igualdade salarial) de forma superficial, sem alterar as estruturas de poder subjacentes.
  • Desafios Comuns: Tanto em sociedades capitalistas quanto em sociedades que se autodenominaram socialistas, a luta contra estereótipos de gênero arraigados e a plena implementação da igualdade na prática se mostraram desafios persistentes.

Em conclusão, a contraposição entre a mulher no mundo capitalista e na sociedade socialista reside na visão teórica sobre a causa e a solução para a desigualdade de gênero, com o socialismo idealmente buscando uma transformação radical das estruturas que perpetuam a opressão, enquanto o capitalismo, em sua lógica, pode coexistir e até se beneficiar de certas formas de desigualdade. O feminismo, por sua vez, atua como uma força crítica e de transformação em ambos os contextos, com diferentes abordagens e prioridades dependendo de sua análise da relação entre gênero e sistemas socioeconômicos.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 1: Fatos e mitos.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 2: A Experiência Vivida.

sábado, 17 de maio de 2025

Sobre as mulheres: uma visão contemporânea - Parte II

Identitarismo e preconceitos:  

Há um bom tempo venho indicando em meus escritos como o identitarismo é pernicioso à sociedade. Bem, o identitário quer tomar para si o título de oprimido e dele utiliza-se para se vitimizar. Então, todo e qualquer fato que possa implicar num desvio contra sua pessoa, daí se transforma numa gritaria sem fim com frases num tom de discurso inflamado de que tudo é machismo, homofobia, racismo, misoginia e por aí vai. O identitário quer de toda forma reinvidicar a carteirinha de vítima e se apoderar de um lugar de fala, em que só ele pode subir ao palanque e discursar. Sim, nada mais justo e assim reconhecemos. No entanto, o palco não é um lugar exclusivo dele -  pois -  há os outros a qual tem a competência e o direito em discursar em favor de uma causa e diante disso enriquecer o debate. De forma alguma, somos contra a identidade e jamais deixaremos de lutar pelas causas das minorias. O ódio e o preconceito em nenhuma hipóstese devem ser vistos e aceitados como elementos normais da sociedade. Cabe a cada ser humano combaté-los. Por outro lado, se se criam mecanismos estruturais para apontar toda sociedade como sendo racista, misógina, homofóbica, ou melhor preconceituosa, acabamos caindo no identitarismo. Tudo isso provoca categoricamente o enfraquecimento dos movimentos de luta por não permitir um dialógo amplo nos espaços públicos. A identidade fica enredada numa teia voltada internamente para seu próprio centro, incapaz de lastrear-se às periférias, assim nasce o identitarismo.  Se a busca por uma identidade está no espírito do pertencimento, no fazer de uma coletividade, no ser igual à, resumindo: eu pertenço, por que pareço com e tenho minhas raízes, sou descendente. Pois isso explica  muito bem a identidade, portanto aceito e compreendo o outro. Ao contrário, no identitarismo, o identitário apropria-se de uma identidade que muitas vezes só lhe é oportuna, e possa lhe trazer algum benefício -  não lhe interessando o outro - ou até mesmo os iguais. Utiliza-se de suas características apenas ao seu belprazer, não importa a ele os movimentos e as lutas sociais daqueles que seriam os iguais. Erroneamente, o significado que dão à palavra identitarismo em linhas gerais como algo que refere-se a movimentos sociais e políticos que se organizam em torno de identidades específicas, como gênero, raça, etnia, orientação sexual, entre outras. O objetivo principal é a afirmação dessas identidades, a luta contra a opressão e a busca por direitos e reconhecimento para os grupos marginalizados. Porém, já sabemos que não é bem isso, como ficou claro nos paragráfos anteriores. Trata-se de um conceito bem mais complexo, ao passo que exige análises sociológicas e históricas aprofudadas. É a partir dessas argumentações que introduziremos a relação da mulher com o identitarismo na sociedade atual.  Se voltarmos na parte I, publicado no texto anterior, ficou claro os atuais movimentos que submetem a mulher a uma condição de ser inferior e perigosa por parte dos "Incels" e  "Red Pills". O total ódio, preconceito e desapreço pela figura feminina. Uma certa aversão, diriamos. Nessa segunda parte, a relação da mulher com o identitarismo na sociedade contemporânea é complexa e multifacetada, permeada por debates acalorados e diferentes perspectivas dentro do próprio movimento feminista e em diálogo com outras lutas sociais. Para compreender essa relação, é crucial analisar o que se entende por identitarismo e como ele se manifesta no contexto da experiência feminina. O nosso discurso se enriquece somente quando temos a capacidade de abstrairmos os conceitos e os distinguirmos plenamente. Dizemos isto pelo fato das políticas de identidade serem necessárias ao trazer direitos sociais e ao mesmo tempo ser fundamental para dar voz e visibilidade às suas experiências de opressão, que muitas vezes são negligenciadas por abordagens universalistas que não consideram as especificidades de gênero. . O feminismo, em sua essência, é uma política de identidade, pois se organiza em torno da identidade de gênero para desafiar o patriarcado e lutar pela igualdade. No entanto, dentro do feminismo, diferentes perspectivas surgem em relação as  políticas de identidade:

  • Feminismo da diferença: enfatiza as diferenças entre homens e mulheres, buscando valorizar as qualidades e experiências consideradas tipicamente femininas. Essa perspectiva pode ser vista como uma forma de identitarismo, focada na afirmação de uma identidade de gênero específica.
  • Feminismo interseccional: reconhece que a experiência de ser mulher é atravessada por outras categorias de identidade, como raça, classe social, orientação sexual, deficiência, etc. A interseccionalidade argumenta que as opressões não atuam de forma isolada, mas se interconectam, criando experiências únicas de discriminação. Essa abordagem critica um identitarismo que se foque apenas no gênero, sem considerar outras dimensões da identidade.

Tais políticas de identidade de certa maneira tem trazidos grandes impactos para as mulheres em nossa atual sociedades. Mudanças que siginificativas em relação a: 

  • visibilidade e representação: tem contribuído para aumentar a visibilidade das experiências de mulheres marginalizadas, como mulheres negras, indígenas, LGBTQIA+ e com deficiência, que historicamente foram excluídas das narrativas feministas dominantes.
  • empoderamento e organização: ao se identificarem com outras mulheres que compartilham experiências semelhantes, as mulheres encontram força e apoio para se organizar politicamente e lutar por seus direitos.
  • desafios à norma: questionamentos quanto as normas sociais e culturais que historicamente oprimiram as mulheres, desafiando estereótipos de gênero e reivindicando a diversidade de experiências femininas.
  • debates e tensões: a relação da mulher com próprio o identitarismo também gera debates e tensões dentro do movimento feminista, como as discussões sobre a inclusão de mulheres trans e as críticas ao foco excessivo em identidades em detrimento de lutas mais amplas contra o sistema capitalista e patriarcal.
Observa-se que há por parte do próprio movimento feminista uma crítica ao identitarismo, a qual algumas correntes dentro e fora do feminismo argumentam que ele pode levar à fragmentação da luta social, ao essencialismo (a ideia de que existe uma essência fixa e universal para cada identidade) e ao vitimismo. Críticos argumentam que o foco excessivo na identidade pode obscurecer as estruturas de poder mais amplas e dificultar a construção de solidariedade entre diferentes grupos oprimidos. Se, por um lado, a afirmação da identidade de gênero e a organização em torno dela foram e continuam sendo cruciais para a luta feminista, por outro, a necessidade de considerar a interseccionalidade e evitar o essencialismo e a fragmentação são desafios importantes. O debate sobre o papel das políticas de identidade no feminismo e em outras lutas sociais continua em aberto, moldando as estratégias e os rumos dos movimentos em busca de uma sociedade mais justa e igualitária para todas as mulheres.
Ao delinearmos esse caminho tortuoso a respeito do identirarismo e os seus impactos no movimento feminista e de luta das mulheres, precismos transpor as barreiras do preconceito e da discriminação. Quem nos aponta uma direção, sob um olhar histórico e social, a respeito do preconceito contra a muher é a filosófa Simone de Beauvoir. Em sua obra "O segundo sexo" (1949) a autora oferece uma análise profunda e influente sobre a construção social e histórica do preconceito contra as mulheres. Para Beauvoir, a mulher não nasce mulher, torna-se mulher. Essa frase icônica resume sua tese de que a feminilidade não é uma essência biológica, mas sim um constructo cultural imposto às mulheres ao longo da história. Com isso a autora apresenta as seguintes perspectivas decritas na obra: 
  • O "Outro": Beauvoir argumenta que, historicamente, a mulher foi definida como o "Outro" em relação ao homem, que é considerado o sujeito, o padrão e o universal. Essa dicotomia fundamental estabelece uma hierarquia onde o masculino representa o positivo e o feminino, a negação, o dependente. Essa alteridade imposta impede que as mulheres se constituam como sujeitos autônomos.
  • Socialização e Educação: Desde a infância, as meninas são socializadas para internalizar papéis e expectativas que as confinam à esfera doméstica, à passividade e à submissão. A educação, muitas vezes diferenciada, reforça essa construção, limitando suas ambições e oportunidades no mundo público.
  • Mitos e Estereótipos: A sociedade perpetua mitos e estereótipos sobre a natureza feminina – como a fragilidade, a emotividade excessiva e a vocação para a maternidade – que justificam a sua subordinação e as impedem de alcançar a plenitude de seu ser. Esses mitos são internalizados tanto por homens quanto por mulheres, perpetuando o ciclo do preconceito.
  • A Construção da Feminilidade: Beauvoir detalha como diversas áreas do conhecimento, como a biologia, a psicanálise e a história, contribuíram para a construção da feminilidade como algo inerente e limitador, ignorando a influência crucial dos fatores sociais e culturais.
A visão de Simone de Beauvoir sobre o mundo feminino intelirga-se por completo aos tempos contemporâneos, em que a força do capital espraia-se nas margens do poder financeiro dominado pelas forças masculinas.  Num tom irônico, porém verdadeiro: o capitalismo é macho, por isso detêm o poder. Dessa forma, podemos antever que o pensamento Simone de Beauvoir já preconizava um certo preconceito  em relação a mulher no mundo neoliberal de agora. Embora as ideias da filosófa tenham sido fundamentais para impulsionar o movimento feminista e promover avanços significativos na luta pela igualdade, o preconceito contra as mulheres persiste e se manifesta de maneiras complexas nesse contexto do neoliberal, observados nos seguintes fatores: 
  • a exacerbação da competição e da individualização: o neoliberalismo, com sua ênfase na competição acirrada, no individualismo e na meritocracia, pode exacerbar as desigualdades de gênero. As mulheres, frequentemente sobrecarregadas com o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado, enfrentam maiores dificuldades para competir em um mercado de trabalho desigual e para ascender profissionalmente.
  • a mercantilização do corpo feminino: A cultura neoliberal frequentemente mercantiliza o corpo feminino, utilizando-o como objeto de consumo e reforçando padrões de beleza irreais e opressivos. Essa objetificação contribui para a desvalorização da mulher como indivíduo e para a perpetuação de estereótipos sexistas.
  • a precariedade do trabalho e a desigualdade salarial: No mercado de trabalho flexível e desregulamentado característico do neoliberalismo, as mulheres tendem a ocupar posições mais precárias, com menores salários e menos benefícios. A persistente desigualdade salarial entre homens e mulheres reflete a desvalorização do trabalho feminino e a manutenção de preconceitos arraigados.
  • o desmonte de políticas públicas: As políticas de austeridade e o desmonte de serviços públicos promovidos pelo neoliberalismo podem impactar desproporcionalmente as mulheres, que dependem mais desses serviços para o cuidado de crianças, idosos e pessoas com deficiência. A redução de creches, de serviços de saúde e de assistência social aumenta a carga de trabalho não remunerado sobre as mulheres.
  • a violência de gênero em um contexto de desigualdade: A violência contra as mulheres, em suas diversas formas, é um reflexo extremo do preconceito de gênero. Em um contexto de desigualdade econômica e social exacerbada pelo neoliberalismo, as mulheres em situação de vulnerabilidade podem enfrentar ainda maiores obstáculos para romper o ciclo da violência e buscar apoio.
Diante de tais fatores, temos grandes desafios para a construção de uma identidade verdadeiramente feminina, e portanto se falar numa interseccionalidade que busque incluir a mulher em todas suas matizes. Então, torna-se crucial reconhecer que o preconceito contra as mulheres se manifesta de maneiras diversas e intersecionais, sendo moldado por fatores como raça, classe social, orientação sexual, identidade de gênero e deficiência. O neoliberalismo, ao acentuar as desigualdades estruturais, também pode intensificar as formas específicas de discriminação enfrentadas por diferentes grupos de mulheres. Em suma, a análise de Simone de Beauvoir continua sendo fundamental para compreendermos as raízes históricas e sociais do preconceito contra as mulheres. No entanto, é essencial analisar como esse preconceito se adapta e se manifesta no contexto do mundo neoliberal atual, com suas próprias dinâmicas de poder e desigualdade. A luta pela igualdade de gênero no século XXI exige uma compreensão dessas interconexões e a implementação de políticas que abordem tanto as heranças históricas quanto os desafios contemporâneos. Um caminho totalmente inverso ao identitarismo. 

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 1: Fatos e mitos.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 2: A Experiência Vivida.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Sobre as mulheres: uma visão contemporânea - Parte I

 

Incels, Red Pills e o mundo das mulheres: uma análise crítica


Em tempos de "Incels" e "Red Pills", bizarrices que povoam as redes sociais, a infosfera e as mídias digitais com seus discursos de ódio as minorias, em destaque contra as mulheres, de maneira sórdida e dissimulada - talvez um tanto desrespeitoso - subjugam a mulher  numa posição de outro, num lugar de inferioridade. Mas para compreendermos tamanho preconceito em relação as mulheres vindos desses sujeitos da modernidade, faz-se necessário conhecer o significado dos termos. Pois então, os termos "incel" e "red pill" emergiram em comunidades online e, embora distintos, compartilham uma visão de mundo problemática em relação às mulheres e aos relacionamentos. Entender suas nuances e interconexões é crucial para analisar seu impacto e suas implicações sociais. Especificamente,  os "incels" é a abreviação de "involuntary celibate" ligados ao celibato involuntário e a misoginia. Refere-se a indivíduos, predominantemente homens heterossexuais, que se definem como incapazes de encontrar parceiras românticas ou sexuais, apesar do desejo por tais relações. A ideologia "incel" é marcada pelas ideias de: vitimização masculina (acreditam ser oprimidos pelas mulheres, sendo que historicamente foi o oposto); misoginia (ódio e desprezo pelo sexo oposto); hierarquia sexual com base no status social e nas características físicas que rotulam os homens como atraentes ou não. Em torno da ideia dos "red pills" o termo faz referência ao filme Matrix por representar o despertar para uma suposta realidade oculta sobre a natureza das mulheres, dos relacionamentos e da dinâmica de poder entre os gêneros. Suas crenças em relação as mulheres pautam-se na: hipergamia feminina (as mulheres são biologicamente programadas para buscar parceiros com status social e recursos superiores aos seus); natureza "fútil" e "manipuladora" das mulheres (visão estereotipada que as retrata como superficialmente interessadas em aparência e poder); opressão masculina na sociedade moderna (alegação de que o feminismo e a correção política criaram uma sociedade tendenciosa contra os homens); necessidade de "despertar" os outros homens (senso de superioridade intelectual sobre aqueles que não viram a verdade - "blue pilled"- mais uma vez a alusão ao filme Matrix). Embora nem todos os "incels" se identifiquem como "red pill" e nem todos os adeptos da "red pill" sejam "incels", existe uma sobreposição significativa entre essas comunidades. A ideologia "red pill" oferece uma "explicação" para a falta de sucesso romântico dos "incels", atribuindo-a à suposta natureza das mulheres e à estrutura social "feminista". Em troca, a frustração e o ressentimento dos "incels" fornecem um terreno fértil para a aceitação das ideias "red pill". No entanto, ambas ideologias têm um impacto negativo e perigoso no mundo das mulheres de várias maneiras, tais como: objetificação e desumanização, que reduzem as mulheres a objetos sexuais ou a seres manipuladores, negando sua individualidade, complexidade e autonomia; justificativa para o ódio e a violência, sendo uma visão de mundo misógina que pode levar à hostilidade online, assédio e, em casos extremos, à violência real contra as mulheres; criação de um ambiente online tóxico que contribuem para a proliferação de discursos de ódio e à normalização de atitudes sexistas e misóginas; e por fim o reforço de estereótipos de gênero prejudiciais, assim perpetuando visões simplistas e negativas sobre homens e mulheres, dificultando relacionamentos saudáveis e igualitários. Do outro lado, a própria mídia tem gerado certos desconfortos sociais ao criar denominações um tanto preconceituosas, como a ideia de "masculinidade tóxica", em que determina o homem como um tirânico, um ser desprezível e vil que atenta contra a moral, os valores e os bons costumes da sociedade. Entretanto, precisamos sair dessa "racionalidade", ou melhor "irracionalidade" do determinismo da linguagem midiática, e assim transpormos para questões mais fecundas, quem sabe aprofundar-se num debate que possa de fato centrar fogo no problema. Da mesma forma, assuntos relacionados ao preconceito racial, tanto como as lutas de classes fecham-se em polêmicas, críticas e muitas vezes em discórdias. As questões relacionadas ao papel das mulheres na sociedade ganham alguns holofotes, porém os embates nas arenas políticas, econômicas e sociais ainda são timidamente discutidas com alguma profundidade. Do ponto de vista histórico a luta feminista é um tanto recente, dado que a mulher ainda permanece sob a tutela de um mundo masculino. O modelo capitalista -  em si - já é uma construção da sociedade masculina, cujo homem é o detentor do poder do capital. Nesse contexto, a mulher submete-se aos caprichos do capital, ou seja, ao poder dos homens. Isso faz dela um ser que se coloca aos pés do "Deus-dinheiro" fabricado pelo homem. No mundo capitalista a mulher é apenas uma peça, uma composição simplória de toda engrenagem que move o motor da sociedade.  Por outro lado, a visão de coletividade - proposta pelo ideais socialistas, ou comunistas - abarca uma premissa de igualdade entre homens e mulheres, melhor ainda, a liberdade feminina em que ambos teoricamente são vistos como trabalhadores, e portanto teriam direitos iguais ou semelhantes em suas diferenças. A mulher no regime coletivo a princípio estaria no mesmo patamar dos homens, já que seus direitos são garantidos pelo Estado. No mesmo caminho, a luta feminista seria tão inconstante, quanto à luta de classes, contudo, essa última faz-se num ambiente de dominação masculina, própria do poder capitalista e da qual os acordos assinados não inclui efetivamente as reivindicações da mulher - relegadas apenas ao papel de mãe, esposa ou filha. Quando inseridas no mundo do trabalho ficam aquém das oportunidades, alijadas das funções de comando e dos melhores salários. Com avanço da sociedade neoliberal, onde o índivíduo é o centro e não mais a sociedade, a mulher é mais uma peça secundária no mundo trabalho, apesar de assumir uma dupla jornada - o lar e o trabalho remunerado - ainda sofre discriminação em relação ao homem. Portanto é fundamental reconhecer a natureza prejudicial dessas ideologias e combatê-las através da educação, do diálogo e da promoção de valores de respeito, igualdade e empatia. Compreender a gênese e a dinâmica dessas comunidades é o primeiro passo para mitigar seu impacto negativo na sociedade e, em particular, no mundo das mulheres. Como disse a grande filósofa Simone de Beauvoir: "quando for abolida a servidão infinita da mulher, quando ela viver para ela, tendo-a liberdade do homem, será ela então o quiser: poeta, escritora, pintota, prostituta, cortesã, ou apenas mulher. 

REFERÊNCIAS: 

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 1: Fatos e mitos.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 43. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 2: A Experiência Vivida.

   

Natureza

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