A implacável crueldade do tempo distancia os amigos, e também abala as ideias e os propósitos de uma vida. Os caminhos se abrem em fendas e abismos incuráveis, deixando profundas cicatrizaes. Absolutamente tudo fica para trás, em passado longínquo daquilo que um dia foi à esperança das conversas sobre pensamentos e memórias. As fronteiras da liberdade e de um mundo melhor se fecham por inteiro, talvez não resta mais nada a se fazer. Nisso, os sonhos são completamente destruídos e a utopia se esvai por entre os dedos. É meu caro amigo, o tempo age contra todos nós, não resta mais nada a fazer. É como uma ponte em ruínas,com trincas e rachaduras, uma estrutura preste a desabar. Assim, os rumos se invertem, bem naquilo que um dia se convergia em ideais e crenças. Então, de repente tomamos o caminho inverso e o que nos resta, talvez, seja a vaga lembrança de um passado que não mais existe. Apenas, rostos estranhos ofuscados pela sombras. Mas como somos teimosos, insistimos em colocar em palavras os nossos sentimentos mais pantanosos. Então caro amigo desconhecido o que pensa você disso tudo? sabemos que a pergunta é dura, se não capciosa - não há uma resposta. Assim, indagamos, como pode suportar a dor de viver em uma sociedade doente e ser incapaz de sentir a dor outro. Ver milhões de miseráveis almas atormentadas a sobreviver na mais completa marginalidade desse mundo hóstil. É aí está você - com sua pança gorda - sentado em uma bela cadeira da mais fina madeira de lei que custou a vida centenas e cetenas de árvores e homens. Em sua bela sala de jantar no mais nobre estilo vitoriano, enquanto desguta, sem qualquer remorsos, culpa ou compaixão, vorazmente, seu caviar e as nobres lagostas preparadas por um jovem "chef de cuisine". Um desses tantos outros, que já um dia vivera a miséria absoluta. Mas aprendera a arte da alta gastronomia - como se fosse a condição única para sua ascenção social. É tocante a mentira da meritocracia, como se num passe de mágica todos pudessem se agarrar as parcas oportunidades. Ainda sim, prezado amigo, continuas aí a beber seu caríssimo vinho do Porto, cujas uvas foram pisadas pelos pés sujos dos pobres trabalhadores das vinícolas, suados de tanto pisar e repisar sobres elas. Talvez, não sinta odor dessas pessoas, somente o gosto refinado do vinho que lhe custou mais do que anos de trabalho dessas pessoas. Certamente, você não compreenda o mais simples conceito sociológico de classes sociais, de desigualdade e de concentração de renda. Sua preocupação está apenas dirigida para o seu estômago e nada mais. Daí termina toda sua capacidade de ver o outro, de reconhecer que a miséria humana é fruto de sua vaidade, de seu egoísmo e do seu narcismo exacerbado. No pódio, há só você em primeiro, segundo e no terceiro lugar e não existe mais espaço, você os ocupa por completo. Quanto aos outros, o nada - o resto. Tudo bem, ou não, é você fruto da nobiliarquia, das antigas gerações de homens que jamais plantaram, ou colheram algum fruto. Possivelmente, não saiba que a madeira da enorme e pesada mesa de sua sala de estar foi obra de algum lenhador, carpinteiro ou artesão vindo da plebe. Desavisado amigo isso é algo que você desconhece, ou se tem uma vaga noção prefere fechar os olhos. Por mais que não queira olhar para baixo, ainda sim irá enxergar, nesses tempos atuais, lá fora pelas ruas - de dentro do seu potente carro blindado - nos sinais um menino maltrapilho sujo pedindo esmola. Do outro lado da rua, verá seres humanos debilitados pela fome e pelas drogas como forma de sobreviver. Estranhamente, você não se comove, pois está tomado pelo fruto do mais ardiloso capital, que o cega. O que mais irrita, é o seu riso, um riso alto de escárnio, maldizendo a tudo que não seja ouro, prata. A sua risada insuportável aos ouvidos, se volta contra os humildes, os trabalhodores, aos sem-tetos, aos miséraveis, cujo define como ratos de esgoto. Ao menos um dia, apenas um desejaria que vivesse a desgraça dos infortúnios. Como passarias sua vida, sem o conforto e o requinte de seu castelo, se caísse junto a sarjeta da rua. E então, comesse o pão amassado pelo cão. É isso que vivem diaramente aqueles visto da janela de seu carro. Mas você não se importa, é indiferente. E essa sua indiferença se vê no semblante de alguém que não compadece à desgraça alheia. Para eles - isso você jamais compreenderá - cada migalha de pão, cada cobertor e um lugar mais quente protegido da chuva e do frio já seria o suficiente - mesmo que tudo isso seja tão pouco, quase nada. Neles moram a amargura, muitas vezes ou não visível, de se sentirem um fracassado, um derrotado em um sistema perverso e desigual. Neles não existem ilusões. Porém, o que mais chama atenção, é justamente você, você sim - e não tente se esquivar - ter tudo e ainda ser como eles, simplesmente por não ter mais o brilho nos olhos e a capacidade de sentir. A sua mais completa fala de tenacidade e de se iludir com a vida o torna tão miserável quanto eles. A única coisa que lhe sobra é a pobreza de um espírito, portanto, só lhe resta o dinheiro.
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