"A
cidade é lugar da dança, do sexo, do amor, do ódio, das paixões.
A cidade
comporta as trocas, os saberes, os fazeres.
A cidade
engloba a cultura, as crenças e os valores.
A cidade é
a mulher que nas manhãs se resguarda em seu recato, mas a noite se desnuda para
o seu amante".
Todas os dias acordamos cedo, bebemos
nosso café e fazemos nosso desjejum matinal, porém milhões de pessoas não
possuem este pequeno luxo, mas tão precioso para a vida. Assim é a cidade, a
polis para os gregos, a urbe, com seu traçado divididos em quarteirões, ruas,
avenidas, algumas contém suas praças, parques desenhados numa arquitetura que
engloba edifícios, arranha-céus, shoppings, lojas. Em suas ruas transitam
veículos particulares e públicos: carros, motos e ônibus. Algumas pessoas com
uma visão mais ecológica preferem os transportes alternativos como bicicletas
ou mesmo caminharem a pé.
Entre edifícios luxuosos, condomínios
fechados habitados pela elite e a parcela de uma classe média que compõem o
cenário central da cidade, entretanto, a poucos quilômetros dali há uma
realidade totalmente discrepante, um lado sombrio que a cidade esconde,
dominado por barracos muitas vezes de madeira, latão, ou construções inacabadas
de alvenaria - residências - se assim podemos denominar.
Nelas um amontoado de seres humanos
que dividem um único cômodo. Pessoas alijadas da sociedade por não ter emprego,
salário ou renda - às vezes, subempregados que vivem de pequenos serviços - ou
até mesmo empregados assalariados, mas que devido ao baixo salário não consegue
pagar um aluguel, por causa do alto valor dos imóveis.
A cidade que comporta o público e o
privado, representada pelo poder público daqueles que elegemos, e em cada
gestão apresenta falsa soluções para os velhos problemas: saneamento, moradia
urbanização das comunidades, aumento do número de escolas, hospitais, postos de
saúdes, o mínimo que todo cidadão tem direito. Do outro lado, a elite
empresarial que ocupam os edifícios sede de suas corporações e na maioria das
vezes donos das áreas que foram ocupadas para construir as comunidades.
Portanto, os conflitos de terra são frequentes e violentos, para que essas
áreas ocupadas sejam reintegradas aos seus donos com apoio do aparato de
segurança do governo, que utilizam de enorme truculência.
Neste encalço, a cidade amanhece e
anoitece em seu ritmo frenético, cada esquina e marquise habitam aqueles
despossuídos de tudo e a rua torna-se seu lar, em meio ao vício das drogas
perfazem uma grande colônia de seres completamente desassistidos pelo poder
público. Esse mesmo poder aliado aas elites colocam toda sua truculência contra
os moradores de rua e os habitantes das comunidades (favelas). Assim vivem os
invisíveis sociais, que só aparecem nas manchetes de jornais em meio a
conflitos, por gera audiência. A cidade desenhada, planejada e democrática não
é de fato essa em que vivemos, talvez, a polis descrita pelos filósofos da
Grécia antiga seja apenas uma utopia bastante longínqua.
A cidade real, em que acordamos todos
os dias, fatalmente não está preparada para o caos pandêmico, certamente poderá
sucumbir se não tomarmos boas medidas de profilaxia. Se o vírus é biopolítico e
reina no meio urbano precisaremos envolver toda uma força tarefa composta por
arquitetos, urbanistas, sanitaristas intrincada a uma boa gestão pública que
tenham eficazes políticas sanitárias e de reurbanização. Sem esses elementos a
cidade perecerá no caos.
Podemos dizer que a cidade é o berço
da produção capitalista, onde a mercadoria é o grande fetiche da sociedade. Em
seus bairros industriais o trabalhador se desloca em transporte público mal
gerido, portanto sujeito ao vírus, e concomitantemente à morte. Saibam que
trabalhador é o produtor da mercadoria e ao mesmo tempo o seu consumidor, por
via de regras, sua morte representa o fim da mercadoria.
As relações de conhecimento se dão no
plano das cidades, com suas universidades, faculdades, centros de pesquisa,
bibliotecas, museus, teatros, arquivos e outras formas de disseminação
cultural. Nestes espaços do conhecimento concentram-se professores,
pesquisadores, intelectuais, artistas, cientistas e filósofos que colaboram
para o desenvolvimento de pesquisas que beneficiam indireta ou diretamente empresas,
governos, ao mesmo tempo trazendo grandes ganhos sociais. Mas é nela, a cidade,
que o vírus predomina, quando os trabalhadores saem de casa para pegar o
transporte coletivo, quase sempre lotado e permitindo que o vírus se espalhe e
chegue até o outro. De ser em ser todos já estão infectados. A partir daí vírus
funde-se a ela, transformando-se numa amálgama impenetrável impossível de se
combater.
A economia não pode parar, grita em
alto e bom som os donos dos meios de produção, é preciso produzir, vender e
consumir para que o lucro não seja cessado. Neste tom brada o capitalista,
queremos mais lucro e não nos importa caso o vírus mate mil, dez mil, cem mil
ou um milhão de pessoas, basta apenas o lucro que o trabalhador produz. Já o
Estado endossa e venera a fome do mercado a qualquer custo.
Num recorte mais sociológico e
antropológico, a cidade apresenta uma multivariedade cultural trazida pelos
fluxos migratórios, que permite explicar a evolução histórica de suas lutas de
classes. No interior desse caldeirão histórico inclui-se a dominação de vários
povos, como os negros africanos, indígenas brasileiros, aborígenes da Oceania,
os povos originários de parte da América do Sul, central e do Norte, que foram
escravizados e dizimados pelos dominadores europeus. Mais recente, podemos
citar o povo judeu que sofreu todo tipo de tortura, e milhões morreram durante
o holocausto, período da segunda guerra mundial nos meados do século XX.
Assim como a fábrica, a cidade
obedece a divisão de classes que se define por uma culturalização heterogênea,
impar e bastante conflitante. Os guetos, as favelas e a periferia perfazem a
cultura da rua, com uma linguagem própria que se fasta dos limites habitados
pelas elites. Nelas encontramos uma forma de expressão singular, quase um
dialeto falado pelos "manos da quebrada", entre eles a comunicação
revela-se bastante audível e perfeita. No entremeio encontra-se a classe média
povoada por aqueles que não reconhecem, ou deixaram de reconhecer a realidade
da periferia e das comunidades, geralmente localizam-se no entorno da cidade e
com seu pensamento consumista estão presentes em lojas e shoppings. Sob o ponto
vista sociológico, a classe média permeia uma camada bastante fluída da
sociedade, que possui um certo poder aquisitivo proveniente das massas
salariais medianas ou altas, ainda sim vendem sua força de trabalho, de
aspectos mais intelectuais, ou mesmo, atuam como profissionais liberais que
incluem os advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, vendedores e outros.
A cidade num panorama histórico tende
a guardar memórias de sua evolução, mas no aspecto geográfico e ambiental
sofrem constantes mudanças, suas ruas, avenidas, edifícios não são
eternos. As evoluções acontecem, dado
que a especulação imobiliária e empresas de construção civil precisam garantir
seu quinhão de lucro e atender as demandas de novas produtos.
A indústria da construção civil é
grande modificadora dos espaços urbanos, em um ritmo frenético torna a cidade
um lugar dinâmico, dotado de vida à custa de muitas mortes, porém cheio de
conflitos e desigualdades.
Os espaços urbanos sofrem mutações
constantes, seja pela migração de pessoas, ou pela alteração geográfica e quiçá
nas modificações causadas pelo traçado arquitetônico e urbanístico.
A gentrificação é o exemplo dessa
alteração em todo "modus operandi" da cidade, que pode ser tanto migratória,
quanto urbanística. Lembrando que ela expulsa de sua área central aqueles que
não conseguem manter um padrão de vida compatível aos altos valores dos
alugueis. Portanto, os que tem uma renda elevada usufruem das melhorias
realizadas nos bairros, antes ocupados pelas classes mais baixas.
Sob a ótica de Marshall Berman - na
excelente obra: "Tudo que é solido se desmancha no ar" - encontramos
dois importantes momentos sobre a interação do homem com espaço urbano e a sua
efetiva alteração. Num primeiro momento Berman discorre sobre os bulevares
parisienses do século XIX, como uma dimensão moderna da cidade, assim ele
coloca:
" Os novos bulevares permitirão o tráfego fluir pelo centro da
cidade e mover-se em linha reta, deu extremo a outro [...] eles eliminariam as
habitações miseráveis e abririam "espaços livres" em meio a camadas
de escuridão e apertado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expansão de
negócios locais em todos níveis e ajudariam a custear imensas demolições municipais,
indenizações e novas construções. Pacificariam as massas, empregando dezenas de
milhares de trabalhadores e gerariam milhares de novos empregos no setor
privado". (BERMAN, 1982, p.194).
Com isso, afirmamos que os bulevares
de Paris foram uma das primeiras marcas da gentrificação, que permitiu a
urbanização e a modernização da cidade. No entanto, esse planejamento urbano
que incluiu grandes mudanças na arquitetura local, com a demolição de velhos
prédios e a destruição de bairro inteiros não modificou em nada a realidade dos
trabalhadores e muito menos dos antigos habitantes que foram jogados os rincões
mais distantes. A construção dos bulevares parisienses demonstrou ainda mais a
face da miséria humana, e criou um espaço de conflito.
Nesse mesmo sentido, a visão de
Berman converge-se para o modernismo, colocando a rodovia como um aspecto
principal de espaço urbano do século XX, sendo que a indústria automobilística
foi eleita como o símbolo da modernidade em termos de eficiência da
produtividade e empregabilidade. A rodovia apresenta-se como a vedete maior da
evolução da cidade. Portanto, o planejamento da pólis no pós-modernismo
concentra-se no tráfego de veículos, nas avenidas largas. Enfim, a vida moderna
está sob as rodas e motores.
Portanto, as relações de oferta e demanda
estão intimamente ligadas às trocas comerciais realizadas no ambiente urbano
das cidades, nelas encontramos os templos do mercado financeiro, como bancos,
corretoras, agências de empréstimos, além de profissionais atuantes no mercado
do dinheiro e por fim a Bolsa de Valores, considerada o Olímpio da
financeirização.
A respeito da cidade Fumagalli e
Mezzadra (2011, p.362) apontam a metrópole como o lugar de luta, assim como foi
a fábrica no passado. A luta dos trabalhadores, que agora está nos braços da
população precisa encaminhar-se para alcançar a plena democracia, que segundo
Fumagalli e Mezzadra seria o instrumento único e capaz de destruir o rentismo.
A crise nas cidades emerge do
capitalismo extremado, onde estado de bem-estar social dá lugar ao neoliberalismo
que precariza a vida do trabalhador pelo fato da renda concentrar-se nas mãos
dos rentistas, assim persiste as desigualdades sociais e econômicas.
Certamente, as análises de Fumagalli
e Mezzadra com relação a metrópole são posteriores e convergem para os escritos
marxistas, que ainda são bastantes atuais e visíveis. Sendo que Marx em sua
obra: Grundrisse discorre sobre as cidades como local do comércio e das trocas
de mercadorias. Historicamente temos relevantes cidades que imperam como centro
comerciais no século XV, como Londres (Inglaterra), Bugres (região de flandres)
e Lubeck (Alemanha) que operavam no comércio de lã, vinho, ferro, armas e
outros produtos. Com destaque Londres foi um importante palco para a formação
do proletariado, da fábrica, da renda e do lucro e principalmente impulsionar
as lutas de classe que culminou nas ideias democráticas.
O próprio Marx coloca a cidade como
um espaço fértil para o surgimento das primeiras manufaturas ao lado da
formação do trabalho assalariado, portanto, o local da exploração pelo capital.
Com isso, deduzimos que a cidade seria o ambiente ímpar, único e talvez
exclusivo para o nascer das ações democráticas, já que havia um forte
sentimento de luta por parte dos trabalhadores.
Seria então, a cidade - na concepção
marxista - autônoma, por canalizar a
produção, a mercadoria e as trocas e ao mesmo tempo funcionar sob a
efervescência dos corpos que a habitam. Porém, os homens estão presos ao
trabalho, a renda e ao dinheiro. Nelas o homem não domina mais o capital, pelo
contrário, o capital faz do homem seu servo, seu escravo.
No atual momento, nessa louca
contemporaneidade da qual impera as tecnologias e redes sociais, o capital
financeiro e intelectual, o conhecimento raso das coisas - a cidade
transformou-se numa profusão de corpos e egos que exalam diferentes cheiros e
matizes abertos a todo tipo de contato pandêmico que dissemina sobre o tecido
social, substancialmente aqueles que habitam as profundezas subterrâneas mais
sujas da metrópole.
A respeito das cidades, como a Meca
representante do capital e símbolo do “status quo”, escreve De Mais (2005,
p.415) que ela:
“Durante milênios foram
locais de consumo dos produtos rurais e que por dois séculos foram o lugar de
produção dos bens industriais, modificaram rapidamente as suas funções,
aparelhando-se de modo a serem hoje o lugar das transações e do lazer”.
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