quarta-feira, 9 de março de 2022

Um mundo afetado pela peste - biopoder e biopolítica

 

O planeta está em alerta, um vírus tomou conta de tudo e parou o mundo inteiro. A pandemia traz um risco eminente à economia, o endividamento das nações já é bem maior que a produção. Percebe-se que as taxas de juros, que estão nos menores patamares podem de forma sorrateira esconder uma insolvência de muitos países e empresas. Os gastos públicos atualmente, em muitas nações, superaram a crise de 2008, isso implica numa recessão global maior que as guerras mundiais e a crise de 1929. Podemos dizer que a pandemia provocou uma reação em cadeia econômica, principalmente nos mercados emergentes, que englobam às economias em desenvolvimento, consequentemente, esse fato reflete num endividamento que cresce num ritmo assustador.

Além disso, a queda no (PIB) Produto Interno Bruto - quantidade de riqueza gerada - de muitos países é uma consequência direta da crise sanitária. Mas em termos de distribuição de renda a situação é bem mais grave. Assistimos nesse período uma forte ampliação das desigualdades sociais, cujos mais pobres caminharam à situação de miséria, enquanto pouquíssimos abocanharam quase dois trilhões de dólares. O fosso das desigualdades sociais e da distribuição de renda demonstram a incapacidade do capitalismo lhe dar com as crises. Nem mesmo o Estado é capaz de articular políticas efetivas de proteção contra o vírus, dado que o estado de bem-estar social fora substituído pelos projetos neoliberais.

O vírus causador da doença denominada de COVID-19, bem que poderia ser chamado de o agente de Wuhan, enfim ele veio da cidade para se espalhar pelo planeta causando o caos total. Trata-se de uma cepa da família dos Coronavirus, assim como o SARS e MERS. Esse vírus jamais deve ser visto somente pela ótica da medicina - ou mesmo como uma doença em si. Vamos além, trata-se de uma agente político que deve ser colocado no âmbito da biopolítica, e, portanto, requer medidas sanitárias urgentes, isso inclui toda uma reconfiguração e reurbanização das cidades, principalmente os bairros pobres da periferia e comunidade. A relação entre pandemia e urbanização das cidades perpassa diretamente pelo conceito de biopolítica, que por sua vez está ligada à ideia de biopoder.

Quando falamos em biopoder no sentido foucaultiano, sendo Foucault o criador do termo, referimos ao controle social, ou seja, o poder que se exerce sobre os indivíduos, ou melhor, sobre os corpos. Ainda digo, o biopoder adaptou-se muito bem ao capitalismo financeiro. Então, quando as forças políticas e governos impõem atitudes a respeito de vacinas, medicamentos, ele exerce o biopoder, ou seja, o poder sobre os corpos. Na sociedade, em geral, o biopoder é um mecanismo para que os corpos estejam amarrados ao sistema político neoliberal. Temos a biopolítica como uma parcela central da financeirização.

Nessa transição do capitalismo produtivo para o capitalismo financeiro, o Brasil continua sendo uma economia periférica, saindo da posição de nona economia mundial para amargar a décima segunda posição, uma queda de 28,3% do PIB em dólares. Estamos fadados a ser uma mera exportadora de commodities (gêneros agrícolas e minério de ferro) que não produz tecnologia e ciência de ponta, dependendo tecnologicamente das nações mais desenvolvidas. Fator visto principalmente com a pandemia, que nos obriga a importar insumos essenciais, além de da própria vacina.

A biopolítica casa-se muito bem com os princípios neoliberais, o que ser quer é a liberdade total, nada de amarras por meio de regras, normas e leis que impeçam o avanço do capital financeiro.  No entanto, o neoliberalismo coloca em cheque toda a estrutura social construída pelo Estado de bem-estar social. Podemos dizer com isso, que o neoliberalismo acaba retirando direitos dos trabalhadores e sem colocar nada lugar ou algo a oferecer. Caminha-se para o desmantelamento dos serviços públicos.

Exacerbação do estado neoliberal junto ao avanço das tecnologias de redes passam a utilizar se do trabalho que não cria valor, dentro da concepção marxista, enquanto contribuímos para o melhoramento de aplicativos e softwares. Ou seja, a melhoria de tecnologias (softwares e aplicativos) por parte dos usuários considera-se um trabalho produtivo não remunerado.

O ideal seria que capitalismo ao menos pairasse no interior de uma maquinaria funcional. Mas por desígnios políticos, econômicos e sociais amplamente contraditórios acaba num revés disfuncional imenso, onde a situação passa a ser insustentável. A atual pandemia exemplifica muito bem, na qual milhares de pessoas são dizimadas diariamente e a falta de articulação das forças políticas tornam-se inertes perante tal condição – isso demonstra a disfuncionalidade total.

O vírus (enquanto uma entidade proteica e biopolítica) assola a vida dos seres humanos, devido a funcionalidade criminosa, negativa e ideológica do Estado – com anuência do capital – precisam impulsionar roda do dinheiro. As grandes empresas necessitam extrair mais-valia e alimentar o capital, através do mercado financeiro. Não há mais sociedade de consumo nesse mundo financeirizado, pois é a oferta que faz a demanda. Tudo agora tornou-se “just in time”, ou seja, por encomenda e sob medida. É o mercado do dinheiro mágico, da qual o crédito passou a ser a grande vedete do sistema financeiro.

Estamos além de uma pandemia, pois suas causas não são medicas e nem o vírus natural. Trata-se de uma sindemia, ou seja, um conjunto de eventos que faz com que o vírus decorra de uma relação intima entre a selva e a cidade. Portanto, elementos característicos das cidades acolhem o vírus e o faz disseminar. Dentre os elementos incluem os problemas sociais (alimentação e moradia precária, falta de saneamento básico, desestrutura das cidades – favelização, acumulo de lixo no entorno das comunidades carentes); descaso do poder público (falta de programas e políticas sanitárias, obras de urbanização de bairros mais pobres e periféricos, vacinação em massa e no prazo estabelecido); as co-morbidades (doenças como: diabetes, pressão alta, obesidade e até mesmo falta de certos complexos vitamínicos).

Diversos estudos realizados por cientistas têm demonstrando o que estamos enfrentando, não se trata de uma pandemia, mas sim de uma sindemia. Assim corrobora Dr. Freddy Cante em seu artigo, de que a sindemia refere-se a uma sinergia entre duas ou mais enfermidades, onde a população mais carente e com doenças como diabetes, obesidade, pressão alta tem maiores chances de contágio e morte pelo vírus. O risco da COVID-19 atua diretamente no campo da biopolítica, quase sempre os mais vulneráveis são aqueles que se encontram nas camadas mais periféricas da sociedade, diga-se trabalhadores pobres e miseráveis. Por isso, a doença em si não é um caso médico, mas político, social e econômico. 

Já o Professor Fernando Lolas Stepke da Universidade do Chile, num recente artigo, ao falar de sindemia - sugere uma interação entre agentes causais, processos sociais e estados patológicos, que deságua num complexo conjunto de fatores externos ao indivíduo. Da mesma forma que o Professor Dr. Cante, Stepke entende a sindemia como uma sinergia do vírus com o ambiente e as pessoas.

Uma sindemia conforme Codeço e Coelho (2008, p.1772) pode ser definida como uma interação entre doenças ou agravos à saúde em populações, que magnificam os efeitos deletérios umas das outras e interagem por diversos motivos. Mais uma vez vimos que o conceito de sindemia atrela-se à ideia de sinergia - ou seja - cooperação, esforço conjunto e simultâneo; entretanto, num sentido negativo.

A sindemia atua dentro de uma rede biopolítica, onde o negacionismo tanto dos entes políticos, quanto da sociedade tem contribuído para um imenso desastre social, culminando na morte de centenas de milhares de pessoas. O negacionismo, ou melhor, as ações negacionistas ganham (num aspecto da linguagem) uma certa conotação de causa e efeito, cujo pensamento está envolvido num plano ideológico posto por uma linguagem meramente interpretativa.  

Uma compreensão da bioeconomia de Fumagalli

O conceito de bioeconomia vai de encontro ao conceito foucaultiano de biopoder, e engloba também a biopolítica. A compreensão destes conceitos é de extrema relevância para entendermos o paradigma do capitalismo cognitivo.

Podemos definir biopolítica na ação política que atuam sobre os corpos, que no modelo foucaultiano se dá por meio das instituições, numa relação de poder que impacta direta ou indiretamente na vida e na saúde dos indivíduos. Já, a bioeconomia centra-se no controle social para que a acumulação capitalista possa invadir nossas vidas. Assim a bioeconomia traz em seu bojo conceitual aspectos da linguagem e do conhecimento como elemento especifico daquilo que Marx denominou "general intellect". Nas palavras de Fumagalli (2010, p.29), "a bioeconomia nasce e se estrutura do biopoder, dando origem a sociedade do controle". A linguagem e o conhecimento irão funcionar como mecanismo de produção e acumulação imaterial, que são próprios do biopoder.

O biopoder para Fumagalli (2010, p.33) está circunscrito no capitalismo cognitivo, que tem características tecnológicas, portanto depende do corpo e da mente dos indivíduos. Nesse contexto, procuramos acrescentar que o “general Intellect” (expressão contida na obra “Grundrisse” de Marx) como saber difuso e aliado à tecnologia modificou inteiramente as relações sociais, econômicas e culturais da sociedade. O saber difuso também afeta profundamente as relações de trabalho e altera as estruturas do capitalismo, onde a informação adquire status de poder e de ação para aqueles que a detêm. Portanto, há aqueles que possuem e se aproveitam dos recursos informacionais, no entanto existe uma grande maioria que são alijados do direito à informação e de suas benesses. Sobre isso, Dantas foi bastante preciso em suas críticas, ao dizer:

“Já se podia falar que o mundo capitalista tendia a dividir-se entre um conjunto sócio-econômico-político bem-dotado de recursos sócio técnico necessários ao acesso e uso da informação; e outro, muito maior, quase desprovido de tais recursos – uma divisão que os nortes americanos, passaram a identificar como os “have” e “have not” (DANTAS, 2002, p.195).      

É esse ter ou não ter acesso à informação, ao conhecimento e ao saber difuso, que caracteriza todo conceito do “general intellect” colocado por Marx nos “Grundrisse”.  O “general intellect ganhou muito mais força nesses tempos atuais de avanços tecnológicos - do que na época de Marx – justamente pela consolidação do capitalismo cognitivo. Mas outra característica que se soma a tudo isso é o mercado financeiro. Pois, a financeirização é um outro fator que caracteriza fortemente o biopoder. Pois, o acesso ao sistema de crédito e o investimento em títulos e ações de empresas e bancos manifestam-se simbolicamente numa atitude de poder e hierarquia. Cria-se uma relação fiduciária, já que o dinheiro se tornou mercadoria, sendo negociada nas bolsas valores. Neste contexto Fumagalli (2010, p.44) faz uma referência importante dos atores que atuam no mercado, assim diz ele:

"longe de ser um lugar neutro onde, em igualdade de oportunidades, os indivíduos negociam mercadorias entre si para aumentar sua própria utilidade e seu próprio bem-estar pessoal, e certamente um espaço fechado e controlado e dirigido por poucos grandes atores económicos, que são capazes predeterminar sua dinâmica, através do poder que possuem em termos de investimentos, tecnologias e alianças político - financeiras, assim como as estratégias autônomas que são capazes de adotar". 

A bioeconomia na ótica do autor pavimenta-se na financeirização, sendo em suas palavras a forma mais atual e sofisticada do biopoder. No capitalismo cognitivo uma gama de fatores irá determinar a grande escalada bioeconômica dos mercados financeiros, que perpassa pela crise fiscal dos Estados, expropriação das rendas do trabalho, informatização dos mercados de ações e câmbio, expansão dos fundos de investimentos e de pensões privados (FUMAGALLI, 2010, p.58). 

Essas mudanças impactam diretamente no “modus operandi dos setores produtivos, as empresas industriais deixam de ser sistematizadas na produção de mercadorias e no amplo consumo, se posicionado ativamente no mercado financeiro. A financeirização das empresas, no entanto, gera em si um certo desconforto para a classe trabalhadora atual, que se vê ameaçada por não ter mais seus postos de trabalho, além da redução salarial e dos direitos trabalhistas, sobretudo o enfraquecimento das entidades sindicais e de representação.

O desenvolvimento tecnológico no atual sistema capitalista não foi suficiente em desenvolver a ampla inclusão das classes mais pobres na divisão da riqueza, ao contrário, aprofundou o abismo da desigualdade social. O capitalismo cognitivo simplesmente cortou o nó existente entre o Estado de bem-estar social e a população, para que o neoliberalismo pudesse adentrar e sugar todo e qualquer resquício de políticas públicas.

Alega-se com isso, que a sociedade precisa avançar e abrir espaço para uma economia da informação e o indivíduo produza e reproduza seus próprios meios de subsistência, seja ele - empreendedor – sem necessidades de serviços públicos e nem mesmo um patrão, acabou a política salarial. Está posto a grande farsa de um neoliberalismo, que faz acredita que seremos vencedores ao investir no mercado financeiro, comprando títulos, ações e contratos futuros para receber juros e dividendos. Muitos destes ativos financeiros são empacotados num conjunto e não condizem com a situação financeira das empresas.

Então, no capitalismo cognitivo sai de cena o trabalho na fábrica, a produção de mercadorias, a regulamentação das leis trabalhistas, e entra no palco o controle social, o individualismo e o mercado financeiro com o mote de que todos podem ser investidores, isso representa a assunção do sistema bioeconômico.

Para que a bioeconomia, de fato, se instale no cerne da sociedade, há uma necessidade de retirar do palco as amarras do Estado, ou como eles chamam - processo de flexibilização, que envolvem a desregulamentação de leis protecionistas; destituição de políticas públicas, desmonte de serviços públicos e financiamento para empresas privadas com o dinheiro público.

Os mercados financeiros conforme Fumagalli estão longe de representar a forma arcaica e improdutiva do capitalismo, pelo contrário, os aspectos mais modernos e inovadores do capitalismo cognitivo, são variáveis ​​centrais do novo modelo de acumulação: linguagem e intelecto geral, que definem, por sua vez, as convenções sociais a partir das quais as novas formas de controle político e econômico.

A evolução da bioeconomia, ou da economia da informação, não importa a denominação, já que adentramos num sistema capitalista, cujas raízes da produção foram podadas e se mantém apenas sob o crivo dos elementos: finanças e tecnologias da informação. E não há uma uniformização desses elementos no mundo - mas sim a dependência de algumas nações por eles -  como explica Dantas:

A sociedade que não desenvolvem tecnologias da informação, com todas as relações e agenciamentos sociais nelas envolvidas, tendem não somente a ser sub-informadas em relações aos países capitalistas centrais; como também a exigir, dentro de suas fronteiras, divisões ainda mais profundas entre suas minorias um tanto ricamente informado e a sua grande maioria pobremente informadas. Aquelas minorias, de algum modo, buscarão ser parte da “sociedade da informação” global, mesmo vestindo grotescas fantasias de “primeiro mundo”, como tantas que a classe média brasileira gosta de exibir ridiculamente. Quanto às maiorias, não lhe restará muito mais do que uma violenta e abjeta exclusão social. Sub-informação: eis o novo nome para o subdesenvolvimento nesta nova etapa da evolução capitalista (2002, p.198-199).                         

 

Hoje, o que impera no mundo não está mais embalado em caixas e papéis de presente, nem mesmo precisou de gastar oito horas de trabalho para ser produzido por operário japonês, alemão ou brasileiro. A mercadoria - a vedete das prateleiras - em seu espetáculo não requer mais público, por não mais existir. Agora, a mercadoria da vez é a informação, o conhecimento que reside nas mentes humanas dotadas de criatividade, inovação e habilidades para exercer o trabalho intelectual.

Para compreendermos a dinâmica do trabalho intelectual no capitalismo cognitivo, faz-se necessário entendermos as diferenças intrínsecas do que Fumagalli (2010, p.133) determina de produção material (hardware), produção linguística (software), produção de conhecimento (wetware) e produção de network (netware). Essa esfera da produção que engloba o material e o imaterial permite a criação de um enorme volume de riqueza. O termo wetware é usado para descrever a integração de conceitos da construção física, conhecida como “sistema nervoso central” e a construção mental, ou seja, a “mente humana”. Wetware pode indicar o ser humano como síntese do software e do hardware.

A partir dos anos setenta, temos uma verdadeira revolução tecnológica que altera completamente o mundo empresarial. O uso de ferramentas gerenciais como: planejamento estratégico, estudo de cenários, ciclo PDCA, análise SWOT substitui, nas empresas, a engessada burocracia e as rígidas rotinas de produção. No final do século XX, assistimos grandes transformações estruturais no mundo corporativo, tais como: mudanças tecnológicas, a qual Fumagalli (2010, p.148) aponta que as tecnologias linguística-informáticas vieram como instrumento para facilitar e automatizar os processos de produção. Acrescenta se nesse contexto, o incremento de novas estratégias produtivas como: outsourcing, downsizing e o “lean production” que são características estruturais de um pós-taylorismo inerente ao capitalismo cognitivo.

Ainda sobre esse paradigma pós-taylorista Fumagalli (2010, p.149) descreve como as relações de trabalho foram inteiramente transformadas por causa das crises do Estado e o desmantelamento do bem-estar social. Inclui-se nessa conta a financeirização, a liberalização mercado de capitais e a decomposição do mercado de trabalho, que alterou profundamente a distribuição das rendas. No entanto, mesmo num Estado neoliberal o governo ainda assume um papel de salvaguarda do setor privado, ao criar políticas de desenvolvimento de distritos industriais, desregulamentar direitos trabalhistas, realizar privatizações de empresas públicas e oferecer linhas de créditos de baixo custo para empresas privadas.

A globalização conforme Fumagalli (2010 p. 151) trata-se de um processo de evolução econômica e produtiva induzida pelos processos de reestruturação do capitalismo, ocorrido após a crise do paradigma fordista dos pós-guerra. A globalização modificou inteiramente o modo de produção e a distribuição de renda. Junto ao desenvolvimento das novas tecnologias de informação tem permitido que a produção seja controlada à distância. É mais que uma revolução tecnológica na visão de Fumagalli, sendo um modelo de organização geoeconômica.

Se no fordismo o poder estava na propriedade, agora, no mundo pós-fordista, é o controle a principal fonte de poder. É um controle direcionado sobre os fluxos imateriais de produção (tecnologias de informação e comunicação em primeiro lugar) e sobre os componentes imateriais de produção (linguagem e trabalho imaterial cognitivo). (FUMAGALLI, 2010, p.154).

Para suprir e ampliar essa necessidade de consumo interno, de demanda exterior e ao mesmo tempo mitigar a crise monetária do modelo fordista, o Estado apresenta-se como solução viável para custear as carências de demandas internas, externas e exterior, através da injeção de moedas. No entanto, esses crescentes gastos do Estado na economia têm gerado um enorme déficit público. Portanto, é nessa crise do capitalismo produtivo que teremos o momento de transição para um novo paradigma, denominado de capitalismo cognitivo. Esse novo paradigma na visão de Fumagalli (2010, p.164) tem como características a realização de uma produção imaterial cognitivo fundamentada em elementos inovadores que modifica imensamente as ferramentas inerentes ao modelo fordista: demanda interna, demanda externa e demanda pública. 

Com o avanço do capitalismo cognitivo, por volta dos anos 90, na qual o neoliberalismo começa a adentrar em várias nações, percebe-se o fortalecimento dos mercados financeiros, ondas de privatização. Em contrapartida, há um desmantelamento do Estado e de suas instituições públicas, onde as políticas de bem-estar social, como previdência, saúde e educação deixam de ser assegurados ao cidadão. Tais serviços que eram públicos, agora são vendidos à população pela iniciativa provada e sem garantia de qualidade e gratuidade, fator que gera um enorme abismo social.

No capitalismo cognitivo, a comunicação e a produção estão entrelaçadas, algo que não se via no paradigma fordista. Como diz Fumagalli (2010. p.168) a conexão entre comunicação e produção é cada vez mais globalizada, onde o ato de consumo envolve ao mesmo tempo participação na opinião pública, nos atos de comunicação e no marketing. São estas relações que fazem do capitalismo cognitivo um sistema de práticas linguístico-comunicativas que influencia diretamente o comportamento e o consumo, há uma louca exigência de pertencimento.  

A marca do capitalismo cognitivo, não está na mercadoria, pois, o homem é a própria mercadoria, vive-se a sociedade do espetáculo de Guy Debord, na qual somos atores e espectadores ao mesmo tempo, o verdadeiro espetáculo está nas relações sociais constantemente midiatizadas. Na verdade, não consumimos produtos, mas sim símbolos e imagens criadas pelos meios de comunicação e pela publicidade de uma produção imaterial.

De encontro a essa ideia de sociedade do espetáculo, em que nós, seres humanos, somos a mercadoria, Fumagalli (2010, p. 172) alinha-se a Guy Debord ao falar que o processo de acumulação ao envolver o indivíduo, tona-se um processo bioeconômico (processo econômico que em sua totalidade é um ato linguístico e de comunicação).   

Fumagalli (2010, p.184) nos diz que atualmente o sistema capitalista estaria em viés de ser superado e que novos atores estariam sendo introduzidos nos modelos de produção baseados em sistemas de redes. Para o autor, isso desenvolve uma cooperação entre os fatores produtivos, que supera a dicotomia capitalista entre trabalho e capital. Dessa maneira, podemos dizer que o capitalismo cognitivo, ao contrário do antigo modelo fordista, introduz novas formas de divisão do trabalho, sobretudo aquelas que permitem o acesso ao conhecimento.  

O capitalismo cognitivo como afirma (Fumagalli, 2010, p.199) trouxe em si novas formas de trabalho cada vez mais precárias. A precarização do trabalho é um fenômeno do neoliberalismo, que se deu com o fim das políticas públicas de bem-estar social e as terríveis reformas trabalhistas que retiram direitos conquistados durante as lutas sindicais, no período do capitalismo industrial. 

De certa forma, o trabalho intelectual tem influenciado negativamente no aspecto cultural. Pois, com a padronização dos processos de comunicação por meio das tecnologias de informação percebe-se claramente um esvaziamento das atividades intelectuais frente a sua mecanização e banalização (FUMAGALLI, 2010, p.201).

Enfim, o que caracteriza o conceito de bioeconomia é justamente essa ligação intrínseca entre vida e trabalho, o que quer dizer que vida e trabalho fundem-se numa coisa só. A partir do momento que compreendemos essa relação vida - trabalho, passamos a entender a dinâmica da biopolítica no interior do capitalismo cognitivo.

Na bioeconomia de Fumagalli, o conhecimento equivale a mercadoria e o dinheiro, sendo que no processo de acumulação - conhecimento produz novos conhecimentos e consequentemente gera mais valor. O trabalho deixa de ser medido pelo tempo, pois o que vale é a imaterialidade do saber e do fazer, donde, exploram-se as trocas de conhecimento. Como a vida e trabalho não se separam no capitalismo cognitivo, a exploração invade o ser humano até em seu íntimo.

Dentro do capitalismo cognitivo, segundo Fumagalli (2010, p.238) a alienação do trabalho move-se mais sobre um plano existencial, do que sobre o plano econômico-material, assumindo a forma da frustração subjetiva, que a atua no nível psicológico, ou seja, na capacidade cognitiva e na intelectualidade do homem contemporâneo. Portanto, essa alienação existencial tem trazido uma série de perturbações humanas como as doenças mentais, tão características desse século XXI. Para compreender mais sobre a alienação existencial, o conceito é bastante discutido nas obras dos filósofos existencialistas, que engloba Jean Paul Sartre, Sören Kierkegaard, Maurice Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir e outros. Neste livro não pretendemos dissecar as obras destes autores, ficando apenas como referência para uma leitura posterior.

Neste espaço que circula o capitalismo cognitivo, a subjetividade age num ambiente de colaboração social, porém o individualismo em termos econômicos e relações sociais, para Fumagalli, converte-se em uma produção alienante. Outro aspecto relacionado à alienação no capitalismo cognitivo é a regulação das relações de trabalho que impede as práticas de cooperação social e as trocas de conhecimentos, Fumagalli (2010, p.241) mostra que essa regulação se converge para o individualismo e hierarquização das relações de trabalho, o que abre precedente para toda forma de exploração. 

Portanto, essa mudança de paradigma do capitalismo fordista pautado na produção material - de mercadorias físicas -  para um capitalismo cognitivo de imaterial, em que a tecnologia, a linguagem, o trabalho e a vida estão fundidas numa coisa só. Assim, entendemos que o sistema capitalista retira da sociedade o conceito de "homo economicus" e insere a noção de "homo bioeconomicus", ou seja, o corpo e a mente humana são mercadorizadas.

A bioeconomia, explica Fumagalli, é um aspecto complementar e simétrico da biopolítica, ou seja, atravessa o indivíduo física e socialmente com adoção de mecanismos de controle. O conceito de bioeconomia nos remete a uma crítica das relações de poder direcionadas à expropriação de valor, sendo inerentes ao capitalismo cognitivo. (FUMAGALLI, 2010, p.261).

A função do conhecimento e do saber está focado no processo de acumulação que se manifesta no trabalho imaterial do capitalismo cognitivo, portanto seu foco ira se fixar na produtividade do corpo e da mente como elemento preponderante para as atuais redes de produção biopolítica. Cria-se a figura do corpo biopolítico coletivo que se situa numa relação dinâmica e conflituosa (FUMAGALLI, 2010, p.264).

Na linguagem, as palavras assumem o papel de código normativo que permite a sistematização da produção social, sobre isso Fumagalli aponta que a linguística é o elemento mecânico da produção bioeconômica, que utiliza a palavra como meio de comunicação, relacionamentos e afetos.  

Para Fumagalli a criação de riqueza e o processo de acumulação do capitalismo cognitivo está fundamenta em três pilares: formação, aprendizagem e cultura. Na formação incluímos a informação, o saber e conhecimento (FUMAGALLI, 2010, p.270).

A produção bioeconômica é resultado de uma estrutura de fluxos, cada vez imaterial, que assume uma forma de redes, uma estrutura central de fluxos, que pressupõem redes linguísticas de comunicação e o desenvolvimento da cooperação social (Fumagalli, 2010, p. 272).

No capitalismo cognitivo, a criação de valor baseia-se no processo de expropriação daquilo que Marx denomina de "general intellect", em função da acumulação privada. O general intellect é resultado do processo de cooperação social que serve de base para o processo de acumulação e permite transformar conhecimento tático em conhecimento explícito, que produz valor no sistema capitalista (FUMAGALLI, p.274). Portanto, na bioeconomia o conhecimento só adquire valor ser for capaz de ser compartilhado entre os indivíduos, ou seja, socializado. Então, com isso podemos que a socialização do conhecimento depende dos signos e símbolos da linguagem.

Quando falamos do comum, no sentido da coletividade, imediatamente falamos também do sujeito e de suas contradições no espaço social e no cotidiano. Pois, o comum está sempre em conflito com imaterialidade do processo bioeconômico de acumulação.

No capitalismo cognitivo esse desmantelamento do Estado de bem-estar social culminou no fim das políticas de proteção social consequentemente agravou a distribuição de renda, acentuando ainda mais a precariedade daquela parcela mais pobre.

O "general intellect" de Marx é justamente, segundo Fumagalli (2010, p.280) o resultado deste processo de cooperação social do comum, sendo amplamente expropriado pelo capital privado.

O Estado assume papéis totalmente diferentes na sociedade, quando passamos da economia industrial fordista, para o capitalismo cognitivo. No primeiro, de acordo com Fumagalli (2010, p.290) o Estado, dentro pacto social fordista, tem como função definir políticas económicas fiscais e monetárias adequadas. No segundo, devido a força do capital financeiro e a globalização, o Estado se vê impedido de elaborar políticas, sejam econômicas ou fiscais, de forma autônoma.

No capitalismo cognitivo as formas de representação e participação ficam fragmentadas, o que desfavorece a concepção de políticas públicas efetivas, como por exemplo, os programas de renda mínima - próprios de uma democracia progressista.  

Em algum momento, poderíamos afirmar que o capital possui vida própria, porém depende de seus operadores (investidores, mercado, traders, analistas financeiros) para que possa crescer e multiplicar, do contrário ele mal sobreviveria.

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