segunda-feira, 13 de junho de 2022

A cidade

 

"A cidade é lugar da dança, do sexo, do amor, do ódio, das paixões.
A cidade comporta as trocas, os saberes, os fazeres.
A cidade engloba a cultura, as crenças e os valores.
A cidade é a mulher que nas manhãs se resguarda em seu recato, mas a noite se desnuda para o seu amante".

Todas os dias acordamos cedo, bebemos nosso café e fazemos nosso desjejum matinal, porém milhões de pessoas não possuem este pequeno luxo, mas tão precioso para a vida. Assim é a cidade, a polis para os gregos, a urbe, com seu traçado divididos em quarteirões, ruas, avenidas, algumas contém suas praças, parques desenhados numa arquitetura que engloba edifícios, arranha-céus, shoppings, lojas. Em suas ruas transitam veículos particulares e públicos: carros, motos e ônibus. Algumas pessoas com uma visão mais ecológica preferem os transportes alternativos como bicicletas ou mesmo caminharem a pé.

Entre edifícios luxuosos, condomínios fechados habitados pela elite e a parcela de uma classe média que compõem o cenário central da cidade, entretanto, a poucos quilômetros dali há uma realidade totalmente discrepante, um lado sombrio que a cidade esconde, dominado por barracos muitas vezes de madeira, latão, ou construções inacabadas de alvenaria - residências - se assim podemos denominar.

Nelas um amontoado de seres humanos que dividem um único cômodo. Pessoas alijadas da sociedade por não ter emprego, salário ou renda - às vezes, subempregados que vivem de pequenos serviços - ou até mesmo empregados assalariados, mas que devido ao baixo salário não consegue pagar um aluguel, por causa do alto valor dos imóveis.

A cidade que comporta o público e o privado, representada pelo poder público daqueles que elegemos, e em cada gestão apresenta falsa soluções para os velhos problemas: saneamento, moradia urbanização das comunidades, aumento do número de escolas, hospitais, postos de saúdes, o mínimo que todo cidadão tem direito. Do outro lado, a elite empresarial que ocupam os edifícios sede de suas corporações e na maioria das vezes donos das áreas que foram ocupadas para construir as comunidades. Portanto, os conflitos de terra são frequentes e violentos, para que essas áreas ocupadas sejam reintegradas aos seus donos com apoio do aparato de segurança do governo, que utilizam de enorme truculência.

Neste encalço, a cidade amanhece e anoitece em seu ritmo frenético, cada esquina e marquise habitam aqueles despossuídos de tudo e a rua torna-se seu lar, em meio ao vício das drogas perfazem uma grande colônia de seres completamente desassistidos pelo poder público. Esse mesmo poder aliado aas elites colocam toda sua truculência contra os moradores de rua e os habitantes das comunidades (favelas). Assim vivem os invisíveis sociais, que só aparecem nas manchetes de jornais em meio a conflitos, por gera audiência. A cidade desenhada, planejada e democrática não é de fato essa em que vivemos, talvez, a polis descrita pelos filósofos da Grécia antiga seja apenas uma utopia bastante longínqua.  

A cidade real, em que acordamos todos os dias, fatalmente não está preparada para o caos pandêmico, certamente poderá sucumbir se não tomarmos boas medidas de profilaxia. Se o vírus é biopolítico e reina no meio urbano precisaremos envolver toda uma força tarefa composta por arquitetos, urbanistas, sanitaristas intrincada a uma boa gestão pública que tenham eficazes políticas sanitárias e de reurbanização. Sem esses elementos a cidade perecerá no caos.

Podemos dizer que a cidade é o berço da produção capitalista, onde a mercadoria é o grande fetiche da sociedade. Em seus bairros industriais o trabalhador se desloca em transporte público mal gerido, portanto sujeito ao vírus, e concomitantemente à morte. Saibam que trabalhador é o produtor da mercadoria e ao mesmo tempo o seu consumidor, por via de regras, sua morte representa o fim da mercadoria.

As relações de conhecimento se dão no plano das cidades, com suas universidades, faculdades, centros de pesquisa, bibliotecas, museus, teatros, arquivos e outras formas de disseminação cultural. Nestes espaços do conhecimento concentram-se professores, pesquisadores, intelectuais, artistas, cientistas e filósofos que colaboram para o desenvolvimento de pesquisas que beneficiam indireta ou diretamente empresas, governos, ao mesmo tempo trazendo grandes ganhos sociais. Mas é nela, a cidade, que o vírus predomina, quando os trabalhadores saem de casa para pegar o transporte coletivo, quase sempre lotado e permitindo que o vírus se espalhe e chegue até o outro. De ser em ser todos já estão infectados. A partir daí vírus funde-se a ela, transformando-se numa amálgama impenetrável impossível de se combater.

A economia não pode parar, grita em alto e bom som os donos dos meios de produção, é preciso produzir, vender e consumir para que o lucro não seja cessado. Neste tom brada o capitalista, queremos mais lucro e não nos importa caso o vírus mate mil, dez mil, cem mil ou um milhão de pessoas, basta apenas o lucro que o trabalhador produz. Já o Estado endossa e venera a fome do mercado a qualquer custo.

Num recorte mais sociológico e antropológico, a cidade apresenta uma multivariedade cultural trazida pelos fluxos migratórios, que permite explicar a evolução histórica de suas lutas de classes. No interior desse caldeirão histórico inclui-se a dominação de vários povos, como os negros africanos, indígenas brasileiros, aborígenes da Oceania, os povos originários de parte da América do Sul, central e do Norte, que foram escravizados e dizimados pelos dominadores europeus. Mais recente, podemos citar o povo judeu que sofreu todo tipo de tortura, e milhões morreram durante o holocausto, período da segunda guerra mundial nos meados do século XX.

Assim como a fábrica, a cidade obedece a divisão de classes que se define por uma culturalização heterogênea, impar e bastante conflitante. Os guetos, as favelas e a periferia perfazem a cultura da rua, com uma linguagem própria que se fasta dos limites habitados pelas elites. Nelas encontramos uma forma de expressão singular, quase um dialeto falado pelos "manos da quebrada", entre eles a comunicação revela-se bastante audível e perfeita. No entremeio encontra-se a classe média povoada por aqueles que não reconhecem, ou deixaram de reconhecer a realidade da periferia e das comunidades, geralmente localizam-se no entorno da cidade e com seu pensamento consumista estão presentes em lojas e shoppings. Sob o ponto vista sociológico, a classe média permeia uma camada bastante fluída da sociedade, que possui um certo poder aquisitivo proveniente das massas salariais medianas ou altas, ainda sim vendem sua força de trabalho, de aspectos mais intelectuais, ou mesmo, atuam como profissionais liberais que incluem os advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, vendedores e outros.

A cidade num panorama histórico tende a guardar memórias de sua evolução, mas no aspecto geográfico e ambiental sofrem constantes mudanças, suas ruas, avenidas, edifícios não são eternos.  As evoluções acontecem, dado que a especulação imobiliária e empresas de construção civil precisam garantir seu quinhão de lucro e atender as demandas de novas produtos.

A indústria da construção civil é grande modificadora dos espaços urbanos, em um ritmo frenético torna a cidade um lugar dinâmico, dotado de vida à custa de muitas mortes, porém cheio de conflitos e desigualdades.

Os espaços urbanos sofrem mutações constantes, seja pela migração de pessoas, ou pela alteração geográfica e quiçá nas modificações causadas pelo traçado arquitetônico e urbanístico.

A gentrificação é o exemplo dessa alteração em todo "modus operandi" da cidade, que pode ser tanto migratória, quanto urbanística. Lembrando que ela expulsa de sua área central aqueles que não conseguem manter um padrão de vida compatível aos altos valores dos alugueis. Portanto, os que tem uma renda elevada usufruem das melhorias realizadas nos bairros, antes ocupados pelas classes mais baixas.

Sob a ótica de Marshall Berman - na excelente obra: "Tudo que é solido se desmancha no ar" - encontramos dois importantes momentos sobre a interação do homem com espaço urbano e a sua efetiva alteração. Num primeiro momento Berman discorre sobre os bulevares parisienses do século XIX, como uma dimensão moderna da cidade, assim ele coloca:

" Os novos bulevares permitirão o tráfego fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, deu extremo a outro [...] eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam "espaços livres" em meio a camadas de escuridão e apertado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais em todos níveis e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas construções. Pacificariam as massas, empregando dezenas de milhares de trabalhadores e gerariam milhares de novos empregos no setor privado". (BERMAN, 1982, p.194).

Com isso, afirmamos que os bulevares de Paris foram uma das primeiras marcas da gentrificação, que permitiu a urbanização e a modernização da cidade. No entanto, esse planejamento urbano que incluiu grandes mudanças na arquitetura local, com a demolição de velhos prédios e a destruição de bairro inteiros não modificou em nada a realidade dos trabalhadores e muito menos dos antigos habitantes que foram jogados os rincões mais distantes. A construção dos bulevares parisienses demonstrou ainda mais a face da miséria humana, e criou um espaço de conflito.

Nesse mesmo sentido, a visão de Berman converge-se para o modernismo, colocando a rodovia como um aspecto principal de espaço urbano do século XX, sendo que a indústria automobilística foi eleita como o símbolo da modernidade em termos de eficiência da produtividade e empregabilidade. A rodovia apresenta-se como a vedete maior da evolução da cidade. Portanto, o planejamento da pólis no pós-modernismo concentra-se no tráfego de veículos, nas avenidas largas. Enfim, a vida moderna está sob as rodas e motores.               

Portanto, as relações de oferta e demanda estão intimamente ligadas às trocas comerciais realizadas no ambiente urbano das cidades, nelas encontramos os templos do mercado financeiro, como bancos, corretoras, agências de empréstimos, além de profissionais atuantes no mercado do dinheiro e por fim a Bolsa de Valores, considerada o Olímpio da financeirização. 

A respeito da cidade Fumagalli e Mezzadra (2011, p.362) apontam a metrópole como o lugar de luta, assim como foi a fábrica no passado. A luta dos trabalhadores, que agora está nos braços da população precisa encaminhar-se para alcançar a plena democracia, que segundo Fumagalli e Mezzadra seria o instrumento único e capaz de destruir o rentismo.

A crise nas cidades emerge do capitalismo extremado, onde estado de bem-estar social dá lugar ao neoliberalismo que precariza a vida do trabalhador pelo fato da renda concentrar-se nas mãos dos rentistas, assim persiste as desigualdades sociais e econômicas.

Certamente, as análises de Fumagalli e Mezzadra com relação a metrópole são posteriores e convergem para os escritos marxistas, que ainda são bastantes atuais e visíveis. Sendo que Marx em sua obra: Grundrisse discorre sobre as cidades como local do comércio e das trocas de mercadorias. Historicamente temos relevantes cidades que imperam como centro comerciais no século XV, como Londres (Inglaterra), Bugres (região de flandres) e Lubeck (Alemanha) que operavam no comércio de lã, vinho, ferro, armas e outros produtos. Com destaque Londres foi um importante palco para a formação do proletariado, da fábrica, da renda e do lucro e principalmente impulsionar as lutas de classe que culminou nas ideias democráticas.

O próprio Marx coloca a cidade como um espaço fértil para o surgimento das primeiras manufaturas ao lado da formação do trabalho assalariado, portanto, o local da exploração pelo capital. Com isso, deduzimos que a cidade seria o ambiente ímpar, único e talvez exclusivo para o nascer das ações democráticas, já que havia um forte sentimento de luta por parte dos trabalhadores.

Seria então, a cidade - na concepção marxista -  autônoma, por canalizar a produção, a mercadoria e as trocas e ao mesmo tempo funcionar sob a efervescência dos corpos que a habitam. Porém, os homens estão presos ao trabalho, a renda e ao dinheiro. Nelas o homem não domina mais o capital, pelo contrário, o capital faz do homem seu servo, seu escravo.

No atual momento, nessa louca contemporaneidade da qual impera as tecnologias e redes sociais, o capital financeiro e intelectual, o conhecimento raso das coisas - a cidade transformou-se numa profusão de corpos e egos que exalam diferentes cheiros e matizes abertos a todo tipo de contato pandêmico que dissemina sobre o tecido social, substancialmente aqueles que habitam as profundezas subterrâneas mais sujas da metrópole.   

A respeito das cidades, como a Meca representante do capital e símbolo do “status quo”, escreve De Mais (2005, p.415) que ela:

“Durante milênios foram locais de consumo dos produtos rurais e que por dois séculos foram o lugar de produção dos bens industriais, modificaram rapidamente as suas funções, aparelhando-se de modo a serem hoje o lugar das transações e do lazer”.       

Diante de tal afirmação, colocada pelo autor, conclui-se que a cidade é verdadeiramente um organismo vivo (pulsante) e mutante que se configura e reconfigura-se conforme sua necessidade e vontade. Ela, a cidade, adapta-se às mudanças imposta pelo capital, provavelmente se as forças políticas da cidade não oferecer uma contraposição benéfica ao capital, este se deslocará para outra mais atraente. Possa parecer um tanto obsceno, mas a relação entre a cidade e o capital, geralmente é um tanto promíscua.

Natureza

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