sexta-feira, 4 de abril de 2025

Conto - briga de bêbados

 

A noite já cambaleava pelas esquinas da cidade, e com ela, dois ilustres representantes da boemia local, carinhosamente apelidados de Zé da Cana e Tonho Garrafa, iniciavam seu habitual “debate” etílico. Zé, com seu bigode farfalhante e camisa florida meio aberta, acusava Tonho, um sujeito magricelo de óculos tortos, de ter “olhado feio” para sua garrafa de cachaça.

Tonho, com a dicção já embaralhada como um novelo de lã, gesticulava amplamente, quase derrubando um poste, e então grita: 

- “Eu? Olhar feio pra essa… essa… água de bateria turbinada? Jamais, seu… seu bigodudo invejoso!”

A discussão escalonou rapidamente para acusações de roubo de paçoca em botecos passados e disputas sobre quem cantava “Evidências” mais desafinado. A plateia, composta por um cachorro vira-lata sarnento e a sombra de um orelhão, observava com desinteresse.

Zé da Cana, num rompante de indignação, tentou dar um passo à frente, mas seus pés pareciam ter entrado em greve. Cambaleou, agarrou-se ao braço de Tonho, e ambos quase foram ao chão num abraço desajeitado.

 - “Tá vendo só? ”, exclamou Tonho, triunfante, “Você não consegue nem andar direito! Quer brigar comigo?”

 - “Isso é porque… porque… a rua tá torta! ”, retrucou Zé, apontando para o asfalto com um dedo vacilante.

A briga atingiu seu ápice quando Zé tentou tirar o chinelo para arremessar em Tonho, mas acabou tropeçando no próprio pé e perdendo o equilíbrio. Tonho, aproveitando a “vantagem”, começou a declamar versos de um samba antigo, trocando todas as palavras e gesticulando como um maestro regendo uma orquestra de mosquitos.

No fim das contas, a “luta” se resumiu a uma série de tropeços, acusações sem nexo e risadas abafadas. Cansados e mais amigos do que inimigos (como de costume), Zé da Cana e Tonho Garrafa se apoiaram um no outro e seguiram cambaleando pela noite, em busca de mais uma dose para “acalmar os ânimos”. A rua, aliviada, voltou ao seu silêncio habitual, guardando para a próxima noite mais um capítulo da épica saga etílica da dupla.

A briga de Zé da Cana e Tonho Garrafa, por mais risível que pareça, espelha uma verdade filosófica incômoda: muitas vezes, as nossas disputas mais acirradas e as nossas convicções mais inflamadas perdem a nitidez e a importância sob a névoa da irracionalidade, seja ela induzida pelo álcool ou por qualquer outra paixão desmedida.

Assim como os tropeços e as palavras desconexas dos bêbados revelam a fragilidade do seu embate, também as nossas discussões acaloradas, quando desprovidas de lógica e empatia, se tornam meros espetáculos de despropósito. A busca por ter razão a qualquer custo, o apego a ressentimentos mesquinhos e a incapacidade de reconhecer a própria instabilidade nos levam a um ciclo vicioso de conflitos sem sentido.

A comicidade da cena nos convida a refletir sobre a futilidade de muitas das nossas guerras cotidianas. Talvez, ao reconhecermos a semelhança entre a nossa teimosia embriagada de certezas e o cambalear dos amigos Zé e Tonho, possamos encontrar um caminho para a moderação, para a escuta e, quem sabe, para um abraço desajeitado que ponha fim à disputa antes que ela nos derrube a todos. A moral da história reside, portanto, na humildade de reconhecer a nossa própria vulnerabilidade e na sabedoria de escolher a paz, mesmo que ela venha acompanhada de umas boas risadas da nossa própria tolice.

 

 

Natureza

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