A noite já cambaleava pelas esquinas da cidade, e
com ela, dois ilustres representantes da boemia local, carinhosamente
apelidados de Zé da Cana e Tonho Garrafa, iniciavam seu habitual “debate”
etílico. Zé, com seu bigode farfalhante e camisa florida meio aberta, acusava
Tonho, um sujeito magricelo de óculos tortos, de ter “olhado feio” para sua
garrafa de cachaça.
Tonho, com a dicção já embaralhada como um novelo de lã, gesticulava amplamente, quase derrubando um poste, e então grita:
- “Eu? Olhar feio pra essa… essa… água de bateria turbinada? Jamais, seu…
seu bigodudo invejoso!”
A discussão escalonou
rapidamente para acusações de roubo de paçoca em botecos passados e disputas
sobre quem cantava “Evidências” mais desafinado. A plateia, composta por um
cachorro vira-lata sarnento e a sombra de um orelhão, observava com
desinteresse.
Zé da Cana, num
rompante de indignação, tentou dar um passo à frente, mas seus pés pareciam ter
entrado em greve. Cambaleou, agarrou-se ao braço de Tonho, e ambos quase foram
ao chão num abraço desajeitado.
- “Tá vendo só? ”,
exclamou Tonho, triunfante, “Você não consegue nem andar direito! Quer brigar
comigo?”
- “Isso é porque…
porque… a rua tá torta! ”, retrucou Zé, apontando para o asfalto com um dedo
vacilante.
A briga atingiu seu
ápice quando Zé tentou tirar o chinelo para arremessar em Tonho, mas acabou
tropeçando no próprio pé e perdendo o equilíbrio. Tonho, aproveitando a
“vantagem”, começou a declamar versos de um samba antigo, trocando todas as
palavras e gesticulando como um maestro regendo uma orquestra de mosquitos.
No fim das contas, a
“luta” se resumiu a uma série de tropeços, acusações sem nexo e risadas
abafadas. Cansados e mais amigos do que inimigos (como de costume), Zé da Cana e Tonho Garrafa se apoiaram um no outro e seguiram cambaleando pela noite, em
busca de mais uma dose para “acalmar os ânimos”. A rua, aliviada, voltou ao seu
silêncio habitual, guardando para a próxima noite mais um capítulo da épica
saga etílica da dupla.
A briga de Zé da Cana e Tonho Garrafa, por mais
risível que pareça, espelha uma verdade filosófica incômoda: muitas vezes, as
nossas disputas mais acirradas e as nossas convicções mais inflamadas perdem a
nitidez e a importância sob a névoa da irracionalidade, seja ela induzida pelo
álcool ou por qualquer outra paixão desmedida.
Assim como os tropeços
e as palavras desconexas dos bêbados revelam a fragilidade do seu embate,
também as nossas discussões acaloradas, quando desprovidas de lógica e empatia,
se tornam meros espetáculos de despropósito. A busca por ter razão a qualquer
custo, o apego a ressentimentos mesquinhos e a incapacidade de reconhecer a
própria instabilidade nos levam a um ciclo vicioso de conflitos sem sentido.
A comicidade da cena nos
convida a refletir sobre a futilidade de muitas das nossas guerras cotidianas.
Talvez, ao reconhecermos a semelhança entre a nossa teimosia embriagada de
certezas e o cambalear dos amigos Zé e Tonho, possamos encontrar um caminho
para a moderação, para a escuta e, quem sabe, para um abraço desajeitado que
ponha fim à disputa antes que ela nos derrube a todos. A moral da história
reside, portanto, na humildade de reconhecer a nossa própria vulnerabilidade e
na sabedoria de escolher a paz, mesmo que ela venha acompanhada de umas boas
risadas da nossa própria tolice.